CONVERSAS DA DIÁSPORA
- Com o Pioneiro Manuel Vieira -
(Toronto, 13 de Novembro de 2003)
Por Adelina Pereira - Adiaspora.com
Adiaspora.com: Temos hoje o privilégio de ter connosco
o Sr. Manuel Vieira, um dos Pioneiros que embarcaram para o Canadá
em 1953. Quer dizer-nos o local e data de seu nascimento?
Manuel Vieira: Nasci em São Miguel, Freguesia de Água
de Pau no dia 4 de Março de 1929.
Adiaspora.com: Conte-nos um pouco como foi a sua infância
em S. Miguel?
Manuel Vieira: Sempre foi boa porque o meu pai embarcou para
as Bermudas quando eu tinha apenas seis meses de idade. Claro,
tivemos uma vida mais ou menos desafogada.
Adiaspora.com: De certa forma, o seu pai também ele foi
pioneiro da emigração açoriana. Como se ocupava
seu pai nas Bermudas nesses tempos?
Manuel Vieira: Foi trabalhar para os
farms (quintas). Aquilo lá era tudo farms
de flores, relvas e pedreiras. Não havia mais nada e ainda
hoje assim se mantém.
Adiaspora.com: O seu pai regressou aos Açores?
Manuel Vieira: Quando o meu pai regressou já tinha eu
15 anos de idade.
Adiaspora.com: Qual era a actividade que seu pai exerceu depois
do seu regresso?
Manuel Vieira: Foi trabalhar para a agricultura.
Adiaspora.com: Diz-nos que teve uma infância feliz. Frequentou
a escola?
Manuel Vieira: Frequentei, mas não gostava da escola
porque estávamos ali presos. Gostava muito de andar ao
ar livre. Os meus pais queriam que tirasse a quarta classe mas
não quis. Fui obrigado a tirá-la na tropa.
Adiaspora.com: Onde é que cumpriu o serviço militar?
Manuel Vieira: Em S. Miguel na 2ª Bateria.
Adiaspora.com: Como é que surgiu então a ideia
de emigrar para o Canadá?
Manuel Vieira: Sempre pensei em emigrar, de sair de S. Miguel,
não porque a vida não nos corresse bem. A vida para
nós, para mim e para o meu irmão, até nos
sorria. Mas queria sair de S. Miguel e ver mundo.
Adiaspora.com: Como teve conhecimento desta oportunidade de emigrar
para o Canadá?
Manuel Vieira: Naqueles tempos não
havia muitas camionetas de carga nos Açores e eu negociava
em madeiras e lenha. O meu irmão e eu comprávamos
e vendíamos madeiras e batatas. Quando o meu pai chegou
das Bermudas, comprámos mais vacas e depois uma carroça
de bois e dali fomos construindo a nossa vida. Soube da oportunidade
de vir para o Canadá através de um comunicado na
Igreja. Nessa altura o meu negócio levava-me à Lagoa
todos os Sábados. Certo Sábado, entrei na Câmara
da Lagoa e encontrei o Presidente Câmara que me disse: "Admiro-me
que não tenhas te proposto emigrares para o Canadá,
uma vez que sei que estás morto por sair daqui e já
deste o teu nome para a Austrália!" Respondi eu: "O
senhor, dizem que o Canadá é uma terra muito fria,
que aquilo é só snow (neve)". "Olha,
que esta é última chance (oportunidade) que
tens. São agora 11.30. Fechamos a porta ao meio-dia e hoje
é o último dia!". Tive de decidir ali mesmo
e acabei por pedir que colocasse o meu nome na lista de candidatos.
Nunca mais pensei naquilo pois passou-se algum tempo sem qualquer
notícia. Ao fim de dois meses, fomos chamados. Acho que
foi no mês de Fevereiro de 1953. Um dia o guarda municipal
bateu à minha porta e chamou por mim, mas como eu estava
atrás na arribana tratando dos bois, este disse
ao meu pai que eu teria de comparecer na praça depois da
Missa (em Agua de Pau fazia-se uma feira todos os Domingos de
manhã na praça). Mas o guarda não disse ao
meu pai do que se tratava. O meu pai ficou aflito, pensando que
eu tinha cometido algum delito. A verdade é que o guarda
não me gramava, não nos dávamos muito bem.
"O que foi que ele fez?", perguntou o meu pai ao guarda.
"Não sei o que fez mas o Senhor Presidente da Câmara
quer falar com ele amanhã na praça." Quando
regressei a casa, o meu pai disse-me: "Olha, amanhã,
depois da Missa, vai à praça que o presidente da
Câmara quer falar contigo." No dia seguinte, após
a Missa, dirigi-me à praça e fui ter com o Presidente.
O meu pai já se encontrava junto dele todo atrapalhado.
Cumprimentei-o e perguntei a razão pela qual queria falar
comigo. Foi então que me informou que se tratava da minha
candidatura de emigração para o Canadá e
que teria de me apresentar na segunda-feira na Casa da Saúde
em Ponta Delgada onde fui submetido a uma prova escrita e oral.
Pediram os meus dados pessoais e perguntaram se tinha sido tropa.
Respondi que sim, que estive na tropa 18 meses com o posto de
1° Cabo na Bateria. Pediram a minha caderneta militar que,
por acaso, estava limpa pois tinha anteriormente feito o requerimento
para a Guarda-Fiscal. Foi assim que tudo principiou.
Adiaspora.com: Mencionou atrás que já tinha pensado
emigrar para a Austrália. Havia na altura oportunidade
de se emigrar para esse país?
Manuel Vieira: Não havia sempre, mas de vez em quanto
ao passar na Lagoa, diziam-me: "P'rá Austrália.
Não queres ir?".
Adiaspora.com: Depois recebeu a notícia que tinha sido
apurado. Quer descrever-nos como foi o seu embarque para cá?
Manuel Vieira: Fomos inspeccionados em
S. Miguel e depois fomos para o continente no Lima. Chegámos
a Lisboa numa Sexta-feira onde fomos inspeccionados no dia seguinte
por médicos canadianos. A dor que senti em deixar Portugal
foi a minha mãe que na altura estava doente, o meu pai
e o meu irmão. Embarquei para o Canadá com os restantes
apurados no Saturnia, um dos quais o meu colega Manuel
Arruda que ainda hoje é meu amigo. Nós saímos
do Lima amigos. Em Lisboa éramos inseparáveis.
Houve um episódio engraçado connosco. Fomos buscar
o bilhete numa agência de viagens que havia no Terreiro
do Paço onde vimos os cacilheiros que atravessam o Rio
Tejo. "Vamos ver isso o que é!" E lá fomos
os dois. Metemo-nos no barco e no outro lado, em Caxias, fomos
beber umas cervejas e petiscar. Lá havia bons petiscos.
Nisto a senhora que nos atendera aproximou-se de nós e
perguntou se tencionávamos voltar para Lisboa naquele mesmo
dia. Respondemos que sim. "Pois olhe que o último
barco já prestes a sair." Eram 11 horas da noite!
Por pouco não perdemos o barco. Continuamos sempre juntos
no Saturnia. Só nos separámos aqui em Montreal,
não por vontade minha, pois sempre tive a ideia de irmos
os dois juntos para um farm.
Adiaspora.com: Lembra-se da data em que embarcou de Lisboa?
Manuel Vieira: No dia 8 de Maio de 1953. Chegámos a Halifax
por volta das 11 da noite do dia 13 do mesmo mês, mas o
barco não encostou porque o porto já estava fechado.
Desembarcámos pelas 7 da manhã do dia seguinte,
14 de Maio.
Adiaspora.com: Para onde se dirigiram quando saíram do
navio?
Manuel Vieira: Fomos para o Pier 21.
Depois fomos tomar o breakfast (pequeno-almoço),
ovos estrelados com o que pensávamos ser chouriço,
mas afinal eram hot dogs (cachorros quentes). Apinhámos
os pratos pensando que era chouriço mas, ao provarmos,
ficámos desiludidos! Após o nosso primeiro pequeno-almoço
canadiano, fomos encaminhados para o comboio rumo a Montreal.
A viagem durou dois dias e uma noite. Naquele tempo vinha muita
roupa para os Açores da América. Eu tinha uma boa
camisa branca que a minha madrinha me enviou quando soube que
vinha para o Canadá com instruções para vesti-la
quando desembarcasse aqui. Assim fiz, mas quando cheguei a Montreal
às 5 da tarde de Sexta-feira, a minha camisa branca era
da cor do carvão! Uma vez em Montreal, fomos para o Centro
de Imigração e depois comer qualquer coisa. Desta
feita, já não escolhi hot dogs! Na viagem
choveu sempre. Nevoeiro e chuva, nevoeiro e chuva. Virávamos
uns para os outros e perguntávamos: "Onde é
que estamos metidos?". Já na Imigração,
ouvi o Inspector Salomão chamar por Manuel Vieira e Armando
Vieira. Fiquei logo mal disposto! Queria ir na companhia do Manuel
Arruda. Ainda tentei convencê-lo mas o inspector disse-me
que não era possível. Naquele tempo, o nosso Concelho
da Lagoa era muito diferente dos outros. Muito diferente. Constava
que as gentes do nosso concelho eram melhores trabalhadores agrícolas
do que as restantes. "Não pode ser. Vais com o Armando
Vieira!". O Armando era um rapaz da minha freguesia. "Já
sais hoje pois o teu patrão já está lá
fora à tua espera. Vais trabalhar numa estufa de ananás."
Adiaspora.com: Como compreendia o que o inspector lhe estava
a dizer?
Manuel Vieira: O inspector era português.
Eu respondi: "O senhor vai-me desculpar. Eu, com a minha
quarta classe que trouxe de Portugal, posso dizer-lhe que o Canadá
não produz ananás." "Então queres
saber mais do que eu!" "Desculpe, mas neste ponto sei."
Quando saí do Centro e vi o patrão que nos viera
buscar, dei de caras com um homem muito forte mas vi logo que
não regulava bem da cabeça, era meio sismado,
e um seu irmão manco. Virei-me então para
o meu colega e disse: "Olha o que temos aqui! Um sismado
e um manco! O que mais iremos encontrar no farm?".
E lá fomos. Nunca mais tivemos notícias dos outros.
O farm do meu patrão ficava nos arredores de Juliette.
A caminho do farm parava em todos os hotéis e bares
que havia à beira da estrada para beber! Não nos
convidava a entrar. Ficávamos à espera no carro.
Chegámos por volta das 2 da manhã! Deram-me um quarto
asseado com todas as comodidades, inclusive, televisão
e rádio. Virei-me para o meu colega e disse: "Não
está nada mal!". Mas na manhã seguinte, quando
me levantei, verifiquei que a sua mãe era vesga de um
olho e a esposa canhota! Um sismado, um manco, uma
vesga e uma canhota! Bem, isto tudo se passou. Logo no primeiro
Sábado, o meu patrão, embora não sendo católico,
disse que nos levaria à igreja que ficava a uns 20 minutos
de carro e nos ia buscar...
Adiaspora.com: Que tipo de exploração agrícola
foi encontrar. Eram então estufas de ananás?
Manuel Vieira: Não. Eram estufas
de tabaco. O patrão não deixava que ninguém
nos tocasse! Isto foi durante a primeira semana. Na segunda, já
não foi como nós queríamos! Pois a partir
daí, por exemplo, se demorássemos um pouco mais
ao Domingo na brincadeira com o pessoal local, já não
tínhamos jantar pois o patrão e a família
jantavam às 4 da tarde. Por conseguinte, tínhamos
de andar 20 minutos a pé para irmos a um store (loja)
que lá havia e onde só vendiam chips (batatas
fritas), Coca-Cola, chocolates e amendoins.
Adiaspora.com: Sabemos que acabou por sair dessa quinta passado
pouco tempo.
Manuel Vieira: Ao fim de 15 dias o patrão
alojou-nos na casa de um seu vizinho francês mas continuámos
a trabalhar com ele. Ali ainda estivemos melhor pois tínhamos
tudo. Comíamos geralmente em casa do patrão mas
quando não, o francês dava-nos de comer. Este senhor
foi um dos meus pais no Canadá! Chamava-se Tony e a esposa
Maria dos Anjos. Tinham uma filha com 7 anos de idade com o mesmo
nome. Saímos pela razão seguinte: Ele tinha um trabalhador
que ganhava horas extras mas nós tínhamos que trabalhar
fosse como fosse, de sol a sol, sem qualquer remuneração
extra, pois para isso tínhamos sido contratados. Em dois
meses ganhei $80 e um dos cheques não teve cobertura. Entretanto,
fomos travando conhecimento com aquele pessoal. O Tony possuía
umas quintas mas os seus sobrinhos não tomavam conta das
propriedades. Eu e o meu colega Armando íamos trabalhar
para aquelas quintas nas nossas horas vagas. Plantámos
tabaco e semeámos batata à nossa moda. Fazíamos
quase tudo à nossa moda. O patrão não queria
que fossemos trabalhar para lá. Queria que, depois das
6 horas, (era verão e o dia alongava-se até às
9 da noite) trabalhássemos para ele. Eu não queria.
O Tony não nos pagava nada mas se eu não tinha comido,
ele dava-me de comer. Era muito atencioso e a miúda sempre
que fosse comer, obrigava-nos a acompanhá-la. Não
se deitava sem nos ver. Tocou-me o coração. Mas
havia um outro aspecto que ainda não mencionei. Eu tinha
conhecimento de vacas. Certo dia vi o leite muito gordo. Disse
ao meu colega que aquele leite não prestava. Existem vacas
em que, ao recolherem à noite, o leite escorre para dentro,
saindo às postas, coalhado na manhã seguinte. Nos
Açores, tinha uma vaca que fazia isto. Nem todas as vacas
o fazem. O meu patrão tinha um trabalhador dinamarquês
pois estivera na Dinamarca durante a Guerra e trouxe-o de lá.
Era o dinamarquês que tratava das duas vacas que o patrão
possuía. O rapaz tinha uma noiva em Montreal e queria lá
ir todas as semanas mas tinha de partir no Domingo de manhã
e voltar à tarde, pois só havia comboio de manhã
com regresso à tarde. O rapaz falou com o Armando que lhe
disse que eu poderia mugir as vacas. E ficou assim combinado.
No Domingo de manhã, quando fui tirar o leite à
vaca, vi o leite coalhado e entornei-o para o chão. A patroa
ficou logo zangada pois a vaca tinha dado muito leite. Expliquei
em português que isto acontecia por vezes quando é
a primeira vez que uma pessoa nova vai mugir uma vaca. Recolhem
o leite até se habituarem à pessoa. Na semana seguinte,
aconteceu novamente. A patroa (a vesga) apareceu por detrás
de mim e deu-me tamanho pontapé que caí para o chão.
Desatou a discutir comigo e a partir dessa data nunca mais quis
saber de mais nada. Nunca mais toquei nas vacas. Certo dia o meu
patrão abeirou-se de mim e disse: "Manuel, vou a Montreal
com o meu irmão. Logo, depois de comeres, vai regar o tabaco."
Isso tínhamos de fazer. Acabávamos de comer por
volta das quatro e meia e até às seis e meia, regávamos
o tabaco. Mas desta feita disse que não queria que o seu
filho levasse o tractor mas sim eu. Naquele dia, quando acabei
de comer, vim para baixo mas já não vi o tractor.
Já ia longe. Chamei pelo rapaz. Quanto mais eu chamava,
mais ele andava. Corri atrás dele e peguei nele, atirando-o
para o chão. Se não fosse o meu colega a saltar
para dentro, acho que o tractor teria passado por cima do rapaz.
Virei-me para o meu colega e disse: "Não quero saber
mais disto! Agora vamos para casa aprontar as malas. Quando o
patrão regressar, vai pôr-nos em Montreal."
Bem dito, bem certo. Era meia-noite quando o patrão chegou.
A mãe contou-lhe o sucedido. (Eu tinha tido muitas brigas
com a mãe por causa da nossa roupa. Quando nos via um par
de peúgas mais novos, pegava para dar aos netos) e ele
foi-nos levar a Montreal onde chegámos às tantas
da manhã. Telefonaram para o Cônsul que disse nada
poder fazer a essa hora mas que nos metessem numa pensão.
Fomos pagar $5 por noite, o que já era dinheiro. O patrão
tinha-nos passado um cheque no valor de $80! Na manhã seguinte,
levantamo-nos e dirigimo-nos ao Cônsul que nos aconselhou
ir a uma dependência do banco donde o patrão tinha
a sua conta e trocar o cheque. Fui ao banco Nova Scotia onde o
gerente me informou que o cheque não tinha cobertura. "Garçon,
ne pas de argent!" Não havia dinheiro na conta! Fomos
para a Imigração onde uma funcionária nos
disse, em fraco português, que teríamos de nos apresentarmos
na manhã seguinte pelas 8. Lá fomos e mostrei-lhe
o cheque. Ela telefonou para o banco mas a conversa foi a mesma.
"Não tem dinheiro, não paga.", disse-nos
ela. Dirigimo-nos ao Cônsul, mas nada feito. "O homem
não tem dinheiro não pode pagar." "Quer
dizer que viemos para aqui como escravos!", respondi-lhe.
Mas eu já tinha escrito ao Inspector Ferreira da Costa
que me informara que éramos livres de irmos para onde quiséssemos.
Trouxemos dinheiro de Portugal para que, no caso de não
nos arranjarmos no Canadá, poder regressar. Aqui havia
somente meia dúzia de continentais. Estávamos desviados
uns dos outros e desconhecia o seu paradeiro. Não sabia
onde se encontrava o meu amigo Manuel Arruda. Regressámos
a St. Lawrence e Sta. Catarina e fomos morar para uma outra pensão.
Depois encontrámos um polícia muito alto na rua.
Puxei-lhe pelo casaco pois não sabia falar nem francês
nem inglês. "Que queres?", perguntou-me em francês.
"pas parler, pas parler", disse-lhe eu. "What language
do you speak?" "Portuguese", respondi-lhe, pois
sempre tínhamos apreendido alguma palavra ou outra. O polícia
bateu-me nas costas e disse: "Fala comigo em português."
Era brasileiro. Os seus pais tinham vindo para o Canadá
quando era miúdo mas ensinaram-lhe sempre a língua
portuguesa. Contei-lhe o se tinha passado connosco. Passados uns
minutos apresentaram-se ali dois carros de polícia que
nos levaram novamente ao banco. Quando o gerente viu a polícia
já não esperou. Saltou cá para fora e contou-lhes
o que se passava. O sargento da polícia, por intermédio
do brasileiro, perguntou-me se o meu patrão tinha carros.
Informei que tinha dois Cadillacs de 52 e duas camionetas de carga.
Perguntaram-nos para onde é que nós íamos,
ao qual respondemos que não sabíamos mas estávamos
com ideias de ir para o Labrador com um rapaz do continente.
O Dr. Carlos César e esposa na entrega
de uma medalha comemorativa ao
Pioneiro Manuel Vieira.
Adiaspora.com: Como teve conhecimento deste continental?
Manuel Vieira: Neste interregno, o Cônsul
mandou apresentarmos todos os dias no Consulado Português.
Certa manhã de chuva, estava sentado à porta do
Consulado quando vi um casal, uma velhota e um homem mais novo,
um padre. Começaram a falar connosco em inglês. "São
portugueses?" "Somos" "São os primeiros
imigrantes que para cá vieram?" "Somos"
e acabámos por lhes contar o que se passava connosco. O
padre comentou que o Cônsul, que também era padre,
estava a proceder muito mal. Puxou por umas notas de $10 americanas
e deu uma a cada. Nesta altura, entrou um rapaz continental que
já estivera no Labrador (Já haviam alguns continentais
e madeirenses vindos da Venezuela e da França) e começou
a falar connosco. Perguntou este ao Cônsul para onde nós
íamos a que este respondeu que, por enquanto, não
tínhamos para onde ir. "Eles vão comigo para
o Labrador!", disse o rapaz. O Cônsul concordou. Então
eu disse-lhe que tinha dinheiro para os bilhetes mas este insistiu
que os pagaria e depois quando começássemos a trabalhar
no Labrador lhe restituiríamos o dinheiro. Descemos à
cidade. Tratei de toda a documentação na Casa
do Trabalho. O rapaz disse-nos para irmos ao seu encontro
no Consulado na manhã seguinte. Depois subiu a escadaria
e foi informar o Cônsul que tudo já se encontrava
preparado para arrancarmos para o Labrador, mas este disse-lhe
que já não o podíamos acompanhar pois teríamos
que ir novamente trabalhar para os farms. O rapaz disse-nos
que nada podia fazer. Eu ainda estive tentado a desobedecer o
Cônsul, mas como éramos os dois sozinhos e não
tínhamos quaisquer conhecimentos, acabámos por acatar
às suas ordens. Acabámos por ser contratados para
irmos trabalhar numa quinta em Saint Michelle, Napierville.
Adiaspora.com: Como correu esta segunda experiência numa
quinta?
Manuel Vieira: Quando chegámos,
já havia lá mais pioneiros portugueses. Estavam
o João Martins, Afonso Tavares, José Bento e o Énio
Vasconcelos. De certa forma, já me senti mais em casa.
Mas quando lá chegámos, reparámos que os
outros dormiam em casa do patrão enquanto o Armando Vieira
e eu fomos alojados num anexo. Trabalhávamos e ganhávamos
dinheiro, $75 ou $80 por mês, e nunca nos faltaram com o
pagamento no fim de mês mas trabalhávamos de sol
a sol. Começávamos às 4 da manhã e
o trabalhador que, no dia seguinte, tinha de levar lá hortaliça
à cidade na camioneta não dormia.
Adiaspora.com: Quanto tempo permaneceu nesta segunda quinta?
Manuel Vieira: Estivemos lá até
o dia 1 de Novembro. Por norma, nessa altura do ano encerram os
farms. Depois regressámos a Montreal. Uma vez na
cidade, foi cada um por si. O João e o Armando acabaram
por regressar ao mesmo patrão. O Afonso, José Bento
e o Manuel Arruda ficaram em Montreal. Descobrimos um rapaz do
continente em Montreal que era uma espécie de agente. Por
uma soma de dinheiro ele arranjava-nos emprego. Era muito esperto.
Fui ter com o rapaz que me pediu $50. Acabou por me arranjar colocação
junto de um comerciante judeu onde enfardava papel e roupas velhas.
Ao fim de um mês, arranjou-me um outro trabalho, desta feita
na construção civil e aí permaneci durante
cerca de um mês, pois com a chegada do Inverno, já
não havia mais trabalho. Juntei-me a um rapaz continental
que tinha vindo para o Canadá comigo, o Mário. Fomos
trabalhar de noite para um restaurante a lavar loiça, ganhando
$12 por semana. Pegávamos ao trabalho pelas 8 da noite
e terminávamos por volta das 2 ou 3 da manhã. Fiquei
no restaurante até ao fim do mês de Abril do ano
seguinte, quando reapareceu o tal rapaz do continente, o agente.
Chamava-se Abel. Disse-nos que nos arranjaria trabalho na construção
de túneis no norte, em Labrador, se lhe pagássemos
$50. Eu e o Evaristo entregámos os $50 e no outro dia fomos
trabalhar para a construção de uma barragem hidroeléctrica,
onde fiquei mais três meses. Tínhamos de abrir um
túnel para uma conduta de água que passava por baixo
do leito do lago.
Adiaspora.com: Conte-nos como foi esta experiência?
Manuel Vieira: Dei-me muito bem lá. Ganhava e comíamos
muito bem. Não trabalhava muito mas era serviço
muito perigoso. Eu trabalhava nuns túneis largos no patamar
de cima a furar rocha. A última broca que metíamos
tinha 20 pés de comprimento e as cavidades eram depois
enchidas com explosivos. Enquanto os outros retiravam o entulho,
ficávamos a descansar. Trabalhávamos quatro horas
e ganhávamos $8 ou $10 por dia. Enfim, aquilo que queríamos.
Depois de termos rasgado o túnel, limpamo-lo. Havia um
madeirense que trabalhava no patamar abaixo. Um dia a minha caixa
de explosivos caiu-lhe em cima da cabeça. Levaram-no para
o hospital e nunca mais o vi.
Adiaspora.com: Quando seguiu para a cidade de Toronto?
Manuel Vieira: Depois regressei a Montreal onde permaneci um
dia e uma noite. Parti para Toronto nos fins de Julho de 1954.
Adiaspora.com: O que o levou a optar por Toronto?
Manuel Vieira: Toronto tinha mais fama do que Montreal. Diziam
que o clima era mais quente.
Adiaspora.com: Como passou o seu primeiro Inverno no Canadá?
Manuel Vieira: Não senti muito frio durante o primeiro
Inverno. Nevou muito nesse ano mas ainda era muito um jovem com
24 anos de idade. Aguentei bem.
Adiaspora.com: O que lhe aconteceu à sua chegada em Toronto?
Manuel Vieira: Fui lavar loiça para um restaurante na
Yonge, a norte da Dundas. Não tive quaisquer problemas
nesse emprego.
Adiaspora.com: Soubemos que nesta altura se reuniu com o seu
velho amigo do barco Lima, o Sr. Manuel Arruda. É verdade?
Manuel Vieira: Nessa altura, o Manuel
estava em Galt (hoje a cidade de Cambridge) mas já
nos tínhamos contactado por correspondência. Havia
cá um rapaz de nome José Meneses que veio já
em 1954 e que tinha um carro. Fomos os dois buscar o Manuel em
Galt que, quando lá chegámos, já tinha as
malas feitas para abalar para Toronto.
Adiaspora.com: Como é que correu a sua vida em Toronto.
Voltou aos Açores passado algum tempo para casar?
Manuel Vieira: Não. Só voltei aos Açores
ao fim de 21 anos.
Adiaspora.com: Decidiu então radicar-se em Toronto?
Manuel Vieira: Não. Em Março
de 1955, fui para Winnipeg. Um meu colega do continente trabalhava
numa companhia de construção civil, a Foundation.
Foi transferido para Winnipeg donde me escreveu a chamar-me para
lá. Trabalhei na Foundation em Winnipeg até
o mês de Novembro. O Manuel ficou em Toronto pois já
estava com ideias de casar com a namorada que deixara nos Açores.
Depois fui transferido para Kenora no norte da Província
do Ontário juntamente com um meu boss (encarregado)
alemão. Em Winnipeg, ganhávamos 75 cêntimos
por hora na construção. Vim para Kenora ganhar $1.25,
com alojamento e alimentação! O custo de vida em
Kenora era mais elevado do que nas restantes cidades. Trabalhei
em Kenora até 1957 quando regressei novamente a Toronto.
Desta feita, arranjei um emprego na limpeza no St. Joseph's Hospital
na secção da Terceira Idade e onde fiquei alguns
meses. Entretanto, soube que um outro boss que tive em
Winnipeg veio para Burlington trabalhar por conta da companhia,
a Foundation, e eu fui ao seu encontro. Acabei por arranjar
trabalho lá. Quando terminou o serviço em Burlington,
a empresa ficou com a empreitada de um edifício a norte
da Yonge, na Avenue Road, onde havia uma dependência do
Banco Nova Scotia. Em seguida, apesar de ter decidido fixar-me
em Toronto, ia trabalhar sazonalmente para Del Rey na cultura
do tabaco. Quando este trabalho findou, regressei novamente a
Toronto e comprei um automóvel novo. Fui trabalhar com
um meu colega já falecido que era meu compadre para uma
outra empresa em acabamentos e tratamento de madeiras.
Adiaspora.com: Quanto tempo se manteve nesta empresa?
Manuel Vieira: Mantive-me dois anos.
Depois a companhia abriu falência. Certo dia, fui a uma
festa com o Manuel Arruda e o António de Sousa do continente,
que foi a primeira apresentação de vinhos portugueses
em Toronto e onde conheci um senhor que trabalhava na Imigração
e que era um bom amigo do Manuel. Perguntou-me o que fazia. Ao
responder que me encontrava desempregado, mandou-me ter com ele
à Imigração pois arranjar-me-ia trabalho.
Mas antes de ir ao seu encontro, parei numa empresa de limpeza
que havia na McCaul e Queen onde pedi trabalho. A secretária
informou-me que não havia vagas. Resolvi ir ao encontro
do tal funcionário da Imigração que, nesse
tempo, se situava na Jarvis e Dundas. Disse-me o senhor; "Tenho
um serviço para ti." Deu-me o endereço da companhia
Gordon MacGagan que era precisamente a mesma onde acabara de visitar!
"Mas acabei de lá ir agora e disseram que não
tinham serviço para mim!" Voltei lá, desta
vez munido de um bilhete do referido funcionário de Imigração.
A secretária ficou surpreendida. "What's the matter
with you. You were here before! Okay, we have a job for you.",
disse-me ela. (O que se passa contigo? Já estiveste
cá! Está bem. Temos um emprego para ti.) Acabei
por trabalhar nessa empresa de limpeza durante cerca de 18 anos!
Ao fim de nove anos, fui promovido a supervisor. Durante
esse tempo, toda a rapaziada que vinha de Portugal, Madeira e
dos Açores ia lá ter comigo e eu arranjava-lhes
trabalho.
Adiaspora.com: Agora falando um pouco sobre a sua vida pessoal.
Entretanto casou?
Manuel Vieira: Era para ter trazido a namorada que tinha deixado
nos Açores para cá, mas não casei com ela.
Houve uns problemas entre as famílias e desisti. O meu
colega que tinha trabalhado comigo nas madeiras era casado e a
esposa tinha umas primas nos Açores. Vi umas fotografias
e na brincadeira escrevi uma carta para uma delas. Começamos
a namorar por carta e ao fim de um ano casei por procuração
e ela veio para cá. Chama-se Maria Manuela. Tivemos uma
filha de nome Isaura.
Adiaspora.com: Depois, qual foi o rumo que a sua vida profissional
tomou?
Manuel Vieira: A empresa de limpeza também
acabou por falir. Mas um meu colega de trabalho escocês,
o Wallerson, que tinha sido manager (gerente) na empresa,
informou-me que tencionava ir trabalhar para o Board of Education
(Direcção Escolar) em Mississauga e que, se o desejasse,
poderia juntar-me a ele, pois usufruiria de melhores condições.
"Vou pensar.", disse-lhe eu. As coisas começaram
a correr mal na empresa de limpeza, pois queriam transferir-me
para outra localidade, e então resolvi tentar a minha sorte
no Board. O Wallerson avisou-me logo que quando o big
boss (patrão) da empresa de limpeza regressasse das
férias, ir-me-ia chamar de novo. Assegurei-lhe que se isto
viesse a acontecer, não sairia do Board. Bem dito,
bem certo. Quando o patrão voltou de férias, perguntou
à sua secretária, que era italiana, o que tinha
ocorrido durante os 15 dias que estivera fora. "Passou-se
muita coisa e o teu braço direito, o Manuel, foi-se embora!"
(Quando comecei a trabalhar naquela empresa fazia limpeza e tratamento
de madeiras. Ao ser promovido a supervisor, passei a tomar conta
só da limpeza de madeiras. Quando abriu o Square One (um
conhecido centro comercial em Toronto), estive a supervisionar
toda a equipa destacada para lá, pois era o homem em que
o patrão mais confiava. Também foi o caso do Scarborough
City Centre e muitos outros malls (centros comerciais).
Cheguei a chefiar mais de trezentas pessoas no turno da noite.)
Como dizia eu, quando o meu patrão soube que tinha ido
trabalhar para o Board of Education em Mississauga, telefonou
para o escocês, de quem era muito amigo, a pedir que me
deixasse voltar para a sua empresa. Este disse-me para ir e que
se não gostasse, poderia regressar em qualquer altura.
Após um ano o patrão faleceu. Ainda mantive-me mais
um ano com o seu filho, mas este não queria nada a ver
com aquilo. Queria era boa vida e chegou-se ao ponto em que os
trabalhadores queriam ir para fora e não terem transporte.
Não havia dinheiro. Tive de emprestar algum e assim acabei
por desistir e aposentar-me.
Adiaspora.com: Acha que valeu a pena emigrar?
Manuel Vieira: Valeu mas foi muito difícil para os primeiros
que cá chegaram.
Adiaspora.com: Quais foram os maiores obstáculos que encontrou
quando chegou ao Canadá.
Manuel Vieira: O primeiro foi a língua. O segundo foi
o tratamento que recebemos nas quintas.
Adiaspora.com: Já alguma vez regressou aos Açores
desde que de lá saiu?
Manuel Vieira: Já fui lá quatro vezes.
Adiaspora.com: Como é que encontrou a sua terra em comparação
com o que era no tempo em que de lá saiu?
Manuel Vieira: Muito diferente e melhor. Bem, melhor num sentido.
A vida lá está muito boa para aqueles que lá
vivem, muito diferente do que era quando me criei. Mas houve um
desenvolvimento em todo o território português demasiado
rápido que acabou por "matar" Portugal.
Adiaspora.com: "Matar" em que sentido?
Manuel Vieira: Muita liberdade. Liberdade a mais.
Adiaspora.com: Nunca pensou regressar de vez?
Manuel Vieira: Não.
Adiaspora.com: Este ano, decorrem por todo o país as comemorações
dos 50 Anos da Imigração Portuguesa para o Canadá.
O que pensa desta vaga de homenagens aos nossos Pioneiros?
Manuel Vieira: Sinto muito orgulho pelo respeito que nos mostraram.
Sinto-me muito orgulhoso. Nunca pensei que tal viesse a acontecer!
Foi um orgulho muito grande para nós! Hoje somos só
oito no Canadá mas falo por todos. É certo que quando
falam a nosso respeito, referem-se a todos nós imigrantes.
Adiaspora.com: Na sua opinião, o que é preciso
para se progredir no Canadá?
Manuel Vieira: É necessário
que os jovens se lembrem do passado, do que os seus pais, e avós
passaram. Não fomos só nós (referindo-se
aos Pioneiros). Os que vieram em 1954 também o passaram
mas já vinham com conhecimento que havia cá outros
portugueses. Quando viemos não se falava no Canadá!
Tinha um meu vizinho que tinha estado muitos anos em New Bedford
nos Estados Unidos, que quando soube que eu vinha para o Canadá,
foi ter com o meu pai para lhe aconselhar que não o permitisse.
"Isso é uma terra de bichos e neve!" avisara
ele. Pensei eu durante aquele primeiro Inverno no Canadá
ao ver tanto snow (neve) que se outros conseguiam cá
viver, eu também havia de fazê-lo; se conseguiam
conduzir na neve também havia de o fazer. Fui talvez um
dos primeiros portugueses a ter carta de condução
e carro no Canadá. Comprei o meu primeiro carro em Kenora
em 1955.
Adiaspora.com: Quer deixar uma mensagem aos nossos jovens?
Manuel Vieira: A minha mensagem aos nossos jovens é esta:
Que se lembrem do passado, do que os seus pais e avós passaram
nesta terra e que continuem a ser Portugueses; não se esquecerem
das suas raízes e falarem sempre a nossa língua!
Por vezes, peço às minhas netas e à minha
filha que o façam. A minha filha ainda fala português
mas as minhas netas não. Não posso fazer nada a
este respeito, visto o pai ser canadiano. A língua portuguesa
tem de sobreviver e hoje é muito necessária no Canadá!
Adiaspora.com: Agradecemos o tempo disponibilizado e deseja-lhe
as melhores venturas para esta viagem aos Açores que se
aproxima. Como se sente a voltar aos Açores integrado no
grupo de Pioneiros a convite do Governo Regional dos Açores?
Manuel Vieira: Sinto-me muito satisfeito
e para falar a verdade não podia ir por motivos de saúde.
Quando regressar dos Açores serei submetido a uma intervenção
cirúrgica. Mas fiz um esforço e pedi à minha
esposa que me desse este gosto!
(Da esquerda para a direita) Afonso Tavares,
Jaime Barbosa, António do Couto, Manuel Arruda, a Directora
Regional das Comunidades, Dra. Alzira Serpa Silva, Manuel Vieira,
João Martins,
Manuel Pavão e Armando Vieira.
Entrevista exclusiva de Adiaspora.com
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