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Fernão Alvares Evangelho, o primeiro homem que aportou à Ilha, tomou-a pela parte Sul e saltou no Penedo Negro que fica ao fundo da enseada do Castelete, junto à encosta da ilha. Afinal, uma história muito antiga e que todos conhecem.
Do Castelete para o sul fica a Maré, pequeno lago que o mar forma e que ainda hoje se conserva, apesar das obras que em seu redor se têm realizado: pelo leste a muralha de defesa e pelo norte e leste a muralha que a rodeia e que evita que o mar, quando embravecido, caminhe pela ruas circundantes, invadindo a Vila, como ainda acontecia até meados do século XX. O espectáculo da planície magnífica suscitou na mente dos povoadores um sonho belo, que as más condições do porto não deixaram realizar na plenitude da aspiração.
A vila “não se construiu ao acaso: assentou-se num plano, fixou-se a planta – porque nos mais antigos documentos, como são instituições de vínculos e outros, tenho encontrado, em confrontações de propriedades, quase todos os nomes das ruas da vila, incluindo a da Barra, a partir das proximidades de André Rodrigues e cuja utilidade hoje se não compreende, mas que, como todas as coisas, teve a sua razão de ser, quando a Barra serviu de porto. “ (1)
E a leste da Maré está o primeiro templo da ilha: “catedral ingénua, tendo por abóbada palhas puríssimas, talvez do trigo que deu a primeira hóstia nela consagrada” e onde “frei Pedro Gigante abençoou as uniões do amor... e, num dia memorável que as gerações esqueceram, aí celebrou solenemente o baptismo do primeiro filho da nova pátria”. (2)
Junto à dita muralha, construída nos anos Sessenta, para suporte do ramal que ligou a parte Sul da Vila à Estrada Regional, ainda se pode descobrir um troço do antigo caminho, em calçada à romana, e onde existem, bem visíveis, os sulcos dos carros de bois que por ela transitavam, quando seguiam, pela antiga “Ladeira da Vila”, às zonas agrícolas, ou no velho caminho que dava volta à Ilha.
Foi naqueles lados que a vila principiou, muito embora Fernão Alvares, primeiro povoador tenha construído sua moradia junto à ribeira que durante muitos anos teve o seu nome e que depois passou a chamar-se “Ribeira da Burra”. A vila “começou junto à ermida de S. Pedro, onde becos estreitos e tortuosos bem claramente indicam (indicavam...) o início da povoação, confirmando a tradição e a história.” (3)
A Maré é um lago calmo e, nas tardes amenas, nela se espelham os raios do Sol no poente. Empresta, pois, à zona um panorama maravilhoso.
Pode o mar embravecido bater na costa e entrar pelo Oeste no grande espaço que é denominado “Juncal”, todavia a Maré, normalmente, está calma. É um viveiro onde se desenvolvem as mais diversas espécies piscícolas. E raramente são pescadas. Só ali conheci, há muitos anos, um pequeno barco – dori – que pertenceu a Manuel Vieira (Chiné) e que, praticamente, era utilizado no apoio à rede (ou estremalho) que nela se deitava no Inverno, quando o mar não permitia que os barcos de pesca saíssem do porto. Na Maré apanhava-se normalmente peixe miúdo.
Mas, já anteriormente, falei de pescas, e basta.
A Maré serve como “espelho” poético a quem a contempla, extasiado, com o Castelete ao fundo a servir-lhe de guarda avançado aos mares do sudoeste. Um espectáculo único por estes lados...
Pelo Oeste há o chamado “mar da Barra” a única “praia” de banhos ou zona balnear que a vila possui. Encontra-se quase no seu estado primitivo, pois as obras que ali se executaram pouco beneficiaram a utilização. E é pena, pois podia ser um bom local para banhos, hoje tanto em voga.
Antigamente, quando a Maré estava no seu estado primitivo, na baixa-mar ficava com uma zona a descoberto e era aproveitada para os pescadores colherem o caranguejo e o camarão miúdo para isca na pesca do alto. Hoje nem sei o que acontece.
Na Maré, se não erro, podia praticar-se diversos desportos à vela e a remos. Demais, parece que as águas não são próprias para banhos, dada a influência das águas doces que brotam da terra. Certo é que, antes de haver água canalizada, muitas pessoas iam à Maré, junto da margem Leste, lavar a roupa em “regos” que abriam na baixa-mar e donde brotava água, se não doce ao menos salobra. E era aí que algumas mulheres, até vindas das Terras, lavavam as roupas da semana. O mesmo acontecia na “Mouraria”, a Norte, no sopé do monte de Santa Catarina. E igualmente na Ribeira do Meio, onde ainda existem o poço e as pias de lavagem ao lado, um arranjo de 1942 e que foi de grande utilidade para a população da Almagreira, Ribeira do Meio e Vila. Com a montagem da rede de distribuição de água, na década de sessenta do século passado, tudo passou ao esquecimento.
Hoje a zona terrestre da Maré está completamente urbanizada, muito embora a lagoa conserve o seu aspecto primitivo. Bom seria que os restos da calçada que ainda existe e que tem continuação no princípio da antiga “Ladeira da Vila”, fossem devidamente acautelados, pois é o que resta, por aqui, do secular caminho em volta da Ilha o qual, para os lados do Norte, das Lajes à Madalena, tinha a denominação de “Caminho dos ilhéus”.
E, já agora, lembro os antigos poços de maré que ainda existem junto da ermida de São Pedro, nas cercanias da Maré e na Rochinha, perto do antigo campo de jogos. (Outros poços públicos, houve que se “sumiram” na voragem dos tempos. E refiro públicos porque quase todas as casas da vila possuíam poços de maré.
São marcos históricos de uma vivência de trabalhos e canseiras, quando as águas das chuvas eram somente captadas e guardadas em grandes talhas, nas casas principais. Os tanques ou cisternas vieram muito mais tarde, praticamente no século XIX. Umas pequenas lápides indicativas e a conservação dos “bucais”, devidamente tapados (como alias acontece nos poços da Rochinha e de São Pedro), bastavam para assinalar esses verdadeiros monumentos históricos.
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1) F.S.Lacerda Machado – “História do Concelho das Lages” . 1936 .
2)ibidem
3)ibidem
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