Vinte e dois famosos atrás de uma bola! Outros tantos a servirem de suplentes e outros a "comerem" à custa desses mesmos triques, que um dia alguém apelidou-os de "craques"!
"Alma sã em corpo são", dizia-se na Antiguidade. O desporto fortalece o corpo, o desportivismo fortalece o espírito e o resultado é saúde – tal continua a ser, ainda hoje, a presunção de alguns inteligentes. A saúde física e mental exagerada torna-se, do ponto de vista embrutecida, monótona, sensaborona, vazia. Em contrapartida, um toque de ambiente doentio, dois dedos de conflito, um pouco de fanatismo e teremos o quanto baste de enfadonho, para recolocar tudo no devido lugar: a vida retomará sabor e despertar-nos-á para os mais enriquecedores desafios…
Mas, vamos ao futebol, Aos referidos jogadores, de como se entretêm a perseguir um objecto conhecido como o "esférico" e a chutá-lo para longe.
Correm de um lado para o outro, como "doidinhos", aos encontrões uns aos outros, bufando, cuspindo, puxando as vestimentas duns e d'outros, vociferando palavrões! O estádio é oval. A bola é redonda. Diz-se que "a estupidez é quadrada"; no entanto insere-se espantosamente bem nesta geometria. As mentes adormecidas pela excitação emotiva abrem-se para o esférico e a estupidez…e fecham-se para a inteligência que é, por sua vez, pontapeada pelas atitudes, ensurdecida pelos gritos. Estes impedem-na de ouvir-se a si mesma e de pronunciar-se acerca do árbitro ou dos indivíduos que ostentam cores do clube que não é o nosso. Quando há golo, berram todos como loucos varridos! Ouvem-se gritos histéricos percorrendo as bancadas, unindo cada espectador na mesma agitação, na mesma voz desafinada, na mesma ruidosa preocupação com a derrota dos outros. Vagas energéticas contraem os abdomens colectivos ocupados em expelir o ar que, atravessando as cordas vocais, se enche de sons caricatos: realiza-se então, uma plena comunhão visceral e sonora. Insulta-se a família do árbitro sem conhecê-la, incita-se os adversários ao intercâmbio de caneladas e fazem-se gestos obscenos e caretas feias. Atiramos cá para fora, compulsivamente, tudo o que nos vai na alma. Grunhe-se descontentamento. Urra-se alegria.
Somatizam-se jogadas. A bola move-nos as tripas e comanda-nos as emoções à distância. Desejo e repulsa sucedem-se à medida que a posição do esférico vai mudando. Estamos juntos a separar-nos uns dos outros, da inteligência e do desportivismo. Somos peritos em desmascarar a profunda realidade do desporto: "o nosso clube é o melhor!" Os jogadores são brutos ou fortes consoante o lado do campo; os outros espectadores usam bandeiras e enfeites para sabermos distinguir os camaradas dos infra-humanos; o árbitro arbitra sobretudo a nossa paixão, com uma "caterva" de impropérios. Ao pão e circo do povo romano sucederam-se as batatas fritas e o futebol; não há sangue, mas há cabeçadas e caneladas. A histeria é libertadora. Emporcalhar o estádio é consubstanciar o que lá vemos passar-se….
O melhor, entretanto, acontece quando as pessoas resolvem, à saída, prolongar o desafio em palavras, gestos, actos e condução automobilística.
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