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Crónica em forma de pêra

 

Uma questão que já me foi colocada inúmeras vezes e ainda surge com regularidade é qual a razão que me levou a mudar para os Açores. Mais de dois anos após ter chegado a Ponta Delgada num avião oriundo de Boston, ainda ando à procura das palavras certas.

À última pessoa que me perguntou, respondi que a minha chegada ao arquipélago tinha sido um acidente de percurso. Embora isso não seja completamente falso, passei o resto do jantar a arrepender-me por não ter conseguido transmitir a ele este espírito brincalhão tão natural na minha língua.

Eis o problema: qualquer tentativa de ser engraçada numa língua que desconhecia completamente em 2008 é um perigo. É o humor que me faz engasgar, é o sotaque que requer tamanhos ajustes e é também este ar sério que não me larga e baralha até o mais esperto dos interlocutores.

Ainda hoje, conversar em português envolve concentração para as pessoas me perceberem. Quem já me ouviu confundir as palavras caneta e caneca sabe que ainda existem momentos cómicos. Também lutei durante meses até conseguir enunciar as palavras maçã e massa de forma diferente. Devido à minha alergia ao glúten, ninguém podia perceber o meu entusiasmo para massa, até explicar que era "massa, aquela fruta que não é pêra".

Já que a minha língua se desprendeu após meses de quase silêncio com cara de "rainha do gelo", o receio de ferir as sensibilidades dos meus interlocutores sobrevive mas a vontade de comunicar é sempre mais forte.

Durante o jantar, a única coisa que quis responder àquele senhor era mesmo lamechas, tipo "apaixonei-me pelo arquipélago à primeira vista e, após um ano de reflexão com muitas idas e voltas, decidi mudar-me para tentar ajudar a colocá-lo no mapa". E mais nada.

Desde o início, a minha escolha sempre foi um desafio, uma aprendizagem intensa e uma lição de vida em grande bem como um teste à minha resistência. E sim, às vezes ainda pergunto a mim própria o que me passou pela cabeça. Pensei e pensei bem antes de cá chegar, mas será que tinha persistido na minha teimosia se tivesse sabido exactamente o que me esperava?

Apesar das dificuldades e dos contratempos, ganhei uma língua e uma cultura e já não consigo imaginar a minha vida sem ambas. Onde quer que esteja, esta lusitanidade pedida emprestada ficará sempre comigo. Embora a lusitanidade não seja genética, emigração é algo que corre nas minhas veias portanto pode ser que uma coisa explica a outra.

Para a senhora dos Correios com quem conversei há algumas semanas, não há sombra de dúvida no que diz respeito à minha escolha açoriana: "Aventura", disse-me ela.

Será? (quazorean@gmail.com)

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