Vivemos num impessoal mundo de pesadelos tenebrosos, do qual não podemos extrair nenhuma ração de bondade nem a mais pequena parcela de afecto e compreensão. Não é assim, todavia. O mundo é este, real e impositivo; a cidade é esta, que daqui observamos, com públicos incidentes, emissária de crueldades, portadora de violências inauditas, latejante, miserável, letal e próspera: a fusão surpreendente de virtudes subtraídas às leis da brutalidade e de brutalidades que são o suporte e o equilíbrio misterioso da sua existência.
Baptista Bastos, escritor disse: "andamos todos ressabiados. Invejamo-nos, desprezamo-nos; se os outros não tiverem defeitos, inventamo-los; deixámos de ser transeuntes, cidadãos: trespassamo-nos com a indiferença, o ressentimento e o ódio. A notícia da prisão deste ou daquele, vizinho, amigo ou inimigo, lança no nosso íntimo uma alegria obscena. Não vivemos – existimos no pequeno mundo de obcecações que nos cegam. Que nos aconteceu? Quem nos roubou a humanidade que permite a clarividência e a energia necessárias para suportar a adversidade, a mentira, a infâmia"? E é verdade! Vivemos ou sobrevivemos nesta selva urbanística? Neste furor de pupilas e sentimentos gerados de ilusões, de desafectos; destas ruas infiltradas nas pessoas, a subtil tirania dos hábitos, o dever, os deveres, as conveniências, o horário que se cumpre, o sistro do tempo, o navegar dos dias…Habituámo-nos a tudo: à cegueira, à fome, à miséria, à afronta vergonhosa, aos vexames e calúnias. Só não nos habituamos à solidão!
Até quando?
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