CONFERENCIA 125 ANOS DO NASCIMENTO
DO CARDEAL D. JOSÉ DA COSTA NUNES
Corria o ano de 1880, prestes a iniciar a época primaveril,
quando a 15 de Março o casal José da Costa Nunes
e Francisca Felizarda de Castro receberam a benesse do nascimento
do seu terceiro filho. A alegria deve ter sido muito grande,
porque o primeiro rebento deste casal, Cândido da Costa
Nunes, tinha falecido 3 anos antes, apenas com 1 ano e 4 meses
de idade. Assim, o novo bebé, baptizado com o nome de
José da Costa Nunes, tornava-se o filho rapaz mais velho
desta família moradora na freguesia da Candelária.
Nos anos seguintes, o jovem José e a sua irmã
mais velha, Ana Felizarda, assistiram ao aumentar da prole paterna
em mais 6 elementos, todos eles baptizados com o sobrenome paterno,
Costa Nunes: 4 rapazes (João, que nasceu em 1882, 2 anos
depois de José; Manuel nascido em 1886; Cândido,
n. em 1890, que recebeu o nome do varão falecido; e Francisco,
n. em 1892) e 2 meninas (Isabel Felizarda, nascida em 1884;
e Francisca Felizarda, a mais nova da família, que nasceria
em 1896, 16 anos depois de José).
Como vemos, o agregado familiar do jovem José era grande,
composto por 10 pessoas os pais e os 8 filhos que sobreviveram
até à idade adulta, factor que terá sido
fundamental para o seu futuro. Como era usual desde há
muito, a vida eclesiástica era uma das poucas saídas
profissionais masculinas possíveis nas épocas
passadas, muito utilizada por múltiplas famílias
na tentativa de aliviarem a pesada carga do sustento de uma
descendência numerosa, como era o caso. A entrada para
o clero, secular ou regular (recurso muito utilizado para a
descendência feminina, uma vez que o matrimónio
também era exigente do ponto de vista económico
pela obrigatoriedade do dote à noiva), era uma estratégia
que garantia a sobrevivência económica de muitas
famílias. Com efeito, para lá da vida religiosa,
o celibato feminino e, desde finais do século XVIII,
a emigração (primeiro para o Sul do Brasil e depois
para o Canadá e E.U.A.) foram os meios mais utilizados
pelas famílias açorianas para garantirem a sua
subsistência. Por isso, é muito interessante observar
como a família dos Costa Nunes é um exemplo perfeito
desta realidade insular de finais do século XIX e inícios
do século XX: os 4 irmãos de José emigram
para os Estados Unidos da América, apenas uma irmã
contrai casamento e as restantes 2 irmãs ficam solteiras,
o que impedia a dispersão dos bens familiares que, de
contrário, seriam escoados no dote matrimonial e, ao
mesmo tempo, garantia companhia aos pais nos tempos da velhice.
Esta competência feminina, que se espelhava pela necessidade
da administração das casas com grandes agregados
familiares, é uma tónica permanente. A parentela
feminina (filhas, netas, sobrinhas e primas) é utilizada
como “dama de companhia” dos elementos masculinos.
Natural terá sido, pois, que a irmã mais nova
de José, Francisca Felizarda da Costa Nunes, tenha sido
o seu principal apoio familiar, acompanhando-o em Goa e em Roma.
Mas para lá do contexto económico, o ambiente
familiar também pressionou a vida futura de José.
A sensibilidade cristã da sua família, que o mesmo,
alguns mais tarde, caracterizará como “modesta
mas rica de sentimentos religiosos” terá tido uma
influência marcante.
A preocupação dos pais de José com o seu
futuro profissional foi, em grande parte, aliviada pela vontade
que, desde muito cedo, este jovem demonstrou em abraçar
a vida religiosa, como mais tarde confessará no seu testamento,
afirmando que “desejei desde criança ser padre”.
Neste aspecto, a pretensão de José da Costa Nunes
é um reflexo de mais de 400 anos da história picoense.
Do Pico, muitos deles sonharam com a missionação
em outras paragens. Nos séculos XIX e inícios do
XX, entre os 45 picarotos que desenvolvem actividades pastorais
fora dos Açores, destaca-se o número daqueles que
se dirigiram para os E.U.A., 27. Em segundo lugar, era o misticismo
oriental que cativava mais jovens, 14. O Brasil (2 picoenses),
África (1) e o Canadá (1) eram manifestamente menos
apelativos.
Este comportamento que alimentava as hostes sacerdotais
resultava de tendências pessoais, aquilo que hoje em dia
poderíamos designar de “vocação”,
e de pressões familiares, mas também expressava
uma corrente hereditária de influenciava familiares próximos
e vizinhos. Há uma tendência para, dentro da mesma
família, diversos membros masculinos se dedicarem à
vida religiosa, numa passagem de testemunho que, geralmente, passava
de tio para sobrinho, com vários graus de afinidade. Este
facto é visível na família dos Costa Nunes,
pois José era sobrinho em 2º grau do Padre António
da Glória, que foi cura e vigário da Candelária
entre os anos de 1809 a 1856. Por sua vez, nesta mesma freguesia,
a influência de José da Costa Nunes levou a que alguns
dos seus descendentes fossem atraídos para o sacerdócio.
É o caso dos padres Áureo da Costa Nunes e Castro;
Manuel da Costa Nunes; e António Maria Nunes da Costa,
sobrinhos de D. José e do bispo Jaime Garcia Goulart, seu
primo (primo pela avó paterna, D. Isabel Emília
da Costa, irmã do pai do cardeal, e avó materna,
D. Isabel Felizarda de Castro, irmã da mãe de D.
José).
[Na totalidade, D. José levou 11 rapazes
para estudarem no Seminário de Macau (8 terceirenses, 2
picoenses e 1 faialense), 9 dos quais seguiram a carreira eclesiástica].
Assegurada a vocação para o sacerdócio de
José da Costa Nunes, era necessário facultar-lhe
a instrução necessária. É curioso
ver a nota redigida pelo pároco da freguesia da Candelária,
o padre Manuel Moniz Madruga, atestando a probidade de José,
que considera ter uma “vida exemplar frequentando com edificante
piedade, rara numa idade de 13 anos, os sacramentos da Penitência
e Eucaristia em todas as primeiras sextas-feiras do mês
desde a primeira comunhão, e que tem dado sinal de muita
vocação para a vida eclesiástica revelando
uma inteligência nada vulgar para as letras” . Este
é o primeiro registo escrito que conhecemos que realça
os dons para a oralidade e para a escrita do futuro cardeal, características
que, pelos vistos, já causavam alguma estranheza num jovem
tão novo.
Neste sentido, ainda uma criança de apenas 13 anos de idade,
é enviado para o Seminário Episcopal, localizado
na ilha Terceira, onde continuaria a sua instrução
escolar. Depois de 8 anos de estudo nesta ilha, recebe a prima
tonsura e as ordens menores. Durante todo este período
de formação, o jovem José continuou a salientar-se
pelas suas qualidades intelectuais e morais, que seriam determinantes
na alteração do rumo que a sua vida teria aos 21
anos de idade. Com efeito, em 1902, o vice-reitor do seminário,
Dr. João Paulino de Azevedo e Castro, também natural
do Pico, da vila das Lajes, é nomeado bispo de Macau. O
percurso brilhante de José, que o destacava entre os demais
seminaristas, leva a que o novo bispo o convide a acompanhá-lo
a Macau, na qualidade de seu secretário particular. Depois
de alguma resistência, pois o convite obrigá-lo-ia
a alterar completamente o trilho que tinha traçado para
si, José decide aceitar o desafio. Assim, depois da primeira
etapa da viagem no navio Açor o levar até Lisboa,
com os 22 anos já feitos, parte para Macau a 23 de Março
de 1902, onde chegará três meses (4 de Junho de 1902).
Todo o ano de 1903 é dedicado a completar a sua formação,
pois faltavam-lhe os três graus para a obtenção
do presbiterado, o que alcança em Julho deste ano, celebrando
a sua missa nova na igreja de S. Agostinho, em Macau.
No início do verão seguinte, em 1904, parte para
as missões de Singapura e Malaca como secretário
do bispo D. João Paulino. Talvez o contacto pessoal com
a realidade local o tenha feito alterar os seus objectivos. Na
verdade, muitos anos mais tarde, o Cardeal confessa publicamente
que, depois das primeiras resistências, apenas tinha acedido
a ir para Macau com o propósito de ganhar experiência
para depois regressar à Europa e ingressar na Universidade
Gregoriana, para aqui ser professor. Ora, pensando ficar apenas
2 anos em Macau acaba por permanecer cerca de meio século.
Deste modo, vemos como os desafios que encontrou foram demasiado
apelativos para que os abandonasse em prol da vida cosmopolita
europeia, como tinha pensado primeiro. Acreditamos, pois, que
o apelo missionário foi demasiado forte para a personalidade
do recém sacerdote. Neste sentido, a sua sensibilidade
missionária prolonga a tradição secular portuguesa,
cujas origens remontam ao século XII, em pleno período
de reconquista Cristã, em que se tentavam converter os
mouriscos à medida que se avançava para o sul do
futuro Portugal. A segunda etapa missionária data dos Descobrimentos.
Não há dúvida que um dos principais objectivos
da expansão Portuguesa foi a divulgação da
fé cristã, considerado pelo poder político
como uma estratégia fundamental para o desenvolvimento
e consolidação das relações económicas,
principalmente das populações costeiras. A tarefa
era, aliás, quase uma obrigação moral dos
descobridores portugueses, uma vez que se acreditava que a Índia
tinha um núcleo de cristãos que sobrevivera desde
a evangelização do apóstolo S. Tomé
(sobreviventes, portanto, de 16 séculos) e que em África
existia o reino cristão do Prestes João. Assim,
era uma incumbência natural reatar os laços entre
estas populações cristãs, isoladas no seio
de muçulmanos e hindus, e os europeus seguidores da verdadeira
fé. O principal contributo para a divulgação
da fé romana veio das ordens mendicantes, franciscanos
e dominicanos, e depois dos Jesuítas, Ordem criada em 1534
(ano de elevação de Angra a cidade e criação
da Sé de Angra). A convite de D. João III, os jesuítas
desenvolvem uma acção missionária potente
que, ainda no decurso do século XVI, se espalham por Macau
e Japão, e que tem como principal figura Francisco Xavier,
que desembarca em Goa em 1542, cuja vida foi muito inspiradora
para D. José. O século XVI é, sem dúvida,
um período áureo para a missionação
no Oriente. No século seguinte, a concorrência dos
outros países europeus, nomeadamente a Inglaterra, a Holanda
e França, faz com que Portugal comece a perder poder económico
e político. Por isso, tenta manter, com particular vigor,
supremacia cultural, para o que a religião desempenhava
um papel crucial. Apesar deste intento, Portugal não tinha
condições para garantir a evangelização
de toda a Ásia. Ao mesmo tempo, à medida que os
novos tempos divulgavam novas referências, ligadas às
correntes racionalistas e positivistas, o espírito das
missões ia sendo alvo de diversas críticas oriundas
de vários sectores da sociedade portuguesa, de que a expulsão
dos Jesuítas, pelo Marquês de Pombal em 1759, é
o símbolo mais ilustrativo e cujo corolário atinge-se
em 1834, quando as leis liberais ordenam a abolição
de todas as congregações e associações
religiosas, nacionalizando todos os seus bens (44 anos depois
de França). As consequências desta decadência
são desastrosas para o vigor da religião cristã
no Oriente, embora em escalas diferentes. Assim, se em 1740, Timor
tinha 18 dominicanos responsáveis pelas missões,
em 1811 já não tem nenhum. Goa também assiste
ao relaxamento da prática religiosa, principalmente nos
conventos e mosteiros, embora consiga assegurar algum serviço
pela existência de um clero autóctone que, entretanto,
tinha sido formado.
A recuperação da missionação no Oriente
só se iniciará no século XIX, mas agora sustentada
por interesses diferentes. Se, na primeira fase, as missões
visavam solidificar as relações comerciais entre
a Europa e o Oriente (comprar e vender produtos: relembro a introdução
na Europa do chá, do milho, do cacau, o crescente uso de
açúcar, a canela e outras especiarias que tanto
influenciaram a gastronomia portuguesa e açoriana) agora
era necessário encontrar locais capazes de fornecer as
matérias-primas imprescindíveis para a indústria
que então se estava a desenvolver na Europa. Para tal,
era necessário estabelecer relações amistosas
com as populações que habitavam já não
apenas as zonas marítimas, mas o interior, e fortalecer
os elos com todos os nativos. Como se compreende, a religião
tinha, no estabelecimento destes laços, um papel fundamental.
E a principal ideologia que sustentava tais elos defendia que
estes povos distantes mereciam conhecer a civilização
verdadeira, ou seja, a europeia. Assim, as missões continuam
a ser uma forma de expandir a fé cristã, mas adquirem
uma competência humanitária, visando o progresso
das civilizações consideradas mais atrasadas. Lentamente,
os homens que se dedicavam à missionação
são de novo respeitados por uma sociedade que adere ao
espírito romântico oitocentista. A consequência
mais visível desta realidade é o renascimento das
congregações: em 1901, o Estado Português
reconhece a existência de 45 associações religiosas,
7 delas dedicadas exclusivamente às missões. A implantação
da República em 1910 não prejudicará este
renascimento, pois depois das primeiras convulsões e oposições,
os republicanos apercebem-se como as missões eram importantes
para divulgar o nome de Portugal e garantir a manutenção
das respectivas colónias, ou seja, compreendem que as missões
asseguravam a riqueza nacional e o prestígio internacional.
Este espírito será mantido ao longo de todo o Estado
Novo, apesar das dificuldades do país em assegurar todas
as dioceses que mantinha sob o seu padroado (veja-se a concordata
de 1950, em que o Presidente da República deixa de apresentar
os bispos das dioceses de Mangalor, Quilon, Cochim, São
Tomé de Meliapor e Bombaim, todas na Índia; Goa
que Portugal perde para União Indiana em 1961 e, mais recentemente,
a perda de Macau, com a passagem da administração
deste território à China, em 1999, o derradeiro
sobrevivente da expressão portuguesa no Oriente).
A vida de D. José da Costa Nunes acompanha,
precisamente, os últimos sucessos, ou seja, beneficia do
patrocínio que o Estado Português concedia à
prática missionária, como instrumento de valorização
nacional. Assim, ele é o herdeiro de oito séculos
de história portuguesa ligada ao proselitismo religioso
que, no arquipélago dos Açores, tem algumas figuras
de destaque, logo desde os primeiros tempos do povoamento. No
século XVI realçam-se D. Frei João Estaco,
terceirense que se torna bispo de Puebla de Los Angeles, no México;
e D. Luís Figueiredo de Lemos, de S. Miguel, bispo de Funchal.
No século XVII, o micaelense D. Frei Afonso Enes de Benevides,
torna-se bispo de Meliapor; D. Frei Cristóvão da
Silveira, natural de Angra, torna-se primaz do Oriente e D. Frei
Bartolomeu do Pilar, de S. Jorge, bispo do Grão-Pará,
no Brasil. No século XVIII, sobressaem D. António
Taveira Brum da Silveira, natural da Horta, arcebispo de Goa e
primaz do Oriente, e D. Manuel de Sousa Enes, natural da ilha
de S. Jorge, bispo de Macau.
Desde os seus primeiros tempos como missionário
no Oriente, o sacerdote José da Costa Nunes continua a
destaca-se pelas suas qualidades humanas e éticas. A sua
carreira sacerdotal tem um percurso ascendente rápido,
que passa pela sua nomeação como Vigário
Geral da Diocese de Macau em 1906, como Governador do Bispado
em 1907 e como Vigário Capitular em 1918. Durante este
período, as dificuldades que terá sentido, para
lá das normais relacionadas com a actividade de evangelização,
foram acrescidas pelas críticas que a religião em
geral e os sacerdotes em particular sofriam por parte dos espíritos
republicanos, fortalecidos pela implantação da República
Portuguesa em 1910. Mais uma vez, foram as suas capacidades morais
e a sua vertente diplomática, donde se destaca a sua eloquência,
que lhe granjearam cada vez maior prestígio e que o levam
a ser nomeado pelo Papa Bento XV, em 1920, bispo de Macau, dignidade
que aceitou com alguma relutância. Aliás, esta mesma
resistência chegou a formalizá-la por escrito, numa
carta que dirige ao Núncio Apostólico em Lisboa,
D. Aquiles, na qual lhe pede que seja aceite em Roma a sua renúncia,
por considerar “as graves responsabilidades que assumiria,
se aceitasse um cargo incomportável com a debilidade das
minhas forças” .
A insistência papal remove as resistências de D. José
que se vê forçado a aceitar o novo cargo. É
neste momento que se vê a profunda ligação
que tinha mantido ao longo de todos estes anos à sua terra
natal. Com efeito, em Novembro de 1921 recebe a sagração
episcopal na matriz da Horta. Regressa a Macau em 1922, dirigindo
esta diocese por cerca de 18 anos. As dificuldades deste governo
foram muitas: estamos a falar de uma área extensa, de Macau
a Timor, com milhões de habitantes habituados a uma fé,
costumes e hábitos diferentes. Mas a habilidade inata de
D. José da Costa Nunes permitiu-lhe lidar e ultrapassar
com sucesso os múltiplos problemas com que se deparou,
nomeadamente os de nível financeiro, essenciais para a
sobrevivência da diocese; e os relacionados com a manutenção
de um clero secular e regular católico em zonas tão
hostis e inóspitas. É necessário não
esquecer que D. José viveu num período de grandes
vicissitudes políticas nacionais e internacionais: no plano
interno, destacaria a instauração da República
Portuguesa em 1910, a implantação do Estado Novo
em 1926 e a Revolução de 25 de Abril, em 1974, dois
antes da sua morte; no plano externo salientaria as alterações
dos acordos entre o Estado Português e Roma, no que respeita
ao Padroado Português no Oriente (Acordos de 15 de Abril
de 1928 e de 11 de Abril de 1929 e a Concordata de 1940), a eclosão
das 1ª e 2ª Guerras Mundiais; a independência
da União Indiana, na década de 1950, o Concílio
Vaticano II (1962-1965), de que será membro da Comissão
Central Preparatória; e a instauração da
Guerra Fria. Acrescentemos ainda que ele assiste e acompanha a
obra delineada por 7 Papas , legítimos herdeiros de S.
Pedro. Ora, a forte personalidade de que D. José era dotado,
associada à sua vasta cultura e ao seu conhecimento do
mundo que o rodeava, permitiu-lhe destacar-se por muitos momentos
e contribuíram para o reconhecimento do seu valor não
só em Portugal, mas também no seio da Igreja de
Roma. Por isso, reconhecido no seu país e internacionalmente,
teve uma carreira brilhante. Em 1940, é nomeado Arcebispo
da Sé Metropolitana, Primacial e Patriarcal de Goa, assumindo
o título de Primaz do Oriente e Patriarca das Índias
Orientais. Em 1946, é condecorado pelo governo português
com a Grã-Cruz da Ordem do império e em 1953 com
a Grã-Cruz da Ordem de Cristo. Neste mesmo ano de 1953,
é nomeado Arcebispo Titular de Odessa, e decide, depois
de 50 anos de actividade pastoral no Oriente, renunciar ao seu
cargo episcopal. Passando a residir em Roma, a sua figura não
é esquecida pela Cúria papal, a qual serve por mais
23 anos. Assim, em 1962 é elevado à dignidade de
Cardeal pelo Papa João XXIII. A deferência que a
Santa Sé tinha para com D. José é ainda visível
em outros 3 momentos: em 1964, quando é o enviado papal
ao IV Centenário das Missões da Companhia de Jesus
em Macau; em 1967, quando é o delegado de Roma às
Festas Jubilares de Nª Srª de Fátima e, finalmente,
em 1976 quando recebe a visita pessoal do Papa Paulo VI, estando
já no seu leito de morte em Roma, cidade onde é
sepultado, na igreja de S. António dos Portugueses, como
pedira no seu testamento. Em Junho de 1997, o seu corpo é
trasladado para a sua ilha natal, ficando sepultado na igreja
da Candelária.
Como vemos, D. José da Costa Nunes tem uma vida longa e
recheada de desafios e conquistas, umas mais fáceis que
outras. A sua resistência física e psicológica
permitiram-lhe gozar de 50 anos de estadia no Oriente e 96 anos
de vida. Decerto que o facto de ter nascido nos bons ares da ilha
do Pico é um factor a considerar nesta longevidade. Para
além desta marca genética, uma vida regrada e metódica
parece ter contribuído ainda mais para a sua excelente
saúde ao longo de tantos anos: comia pouco, repousava sempre
um nº de horas certas, exercitava-se fisicamente, nomeadamente
passeando todos os dias cerca de 3 a 12 Km e mantendo um quotidiano
sem vícios, nomeadamente o do tabaco, com o qual cortou
radicalmente em 1925.
Personagem complexa pela confluência de
interesses e actividades, gostaria de destacar algumas da suas
mais interessantes vertentes.
D. José, o religioso
Na sua dimensão religiosa, D. José da Costa Nunes
era um firme defensor da estratégia missionária.
Esta teria que ser edificada no seio do Evangelho. Numa das suas
primeiras pastorais, datada de 15 de Junho de 1922, o recém
bispo regulamenta o comportamento do cristão, que deveria
ser “honesto, puro, dócil aos ensinamentos da Igreja,
compassivo com as misérias alheias, amante da justiça,
da verdade e do bem, numa palavra tem de colocar-se adentro das
normas traçadas pelo Evangelho, porque é neste código
divino que se estriba a moral individual e a moral social”.
Mais à frente, acrescentava: “Diz-se, e com razão,
que a sociedade moderna atravessa uma dolorosa crise moral, cujas
consequências deploráveis todos nós apalpamos.
Há só um meio de a curar: é recristianizá-la”
. A religião era, pois o instrumento da paz no mundo e
do purismo ético. Esta posição encontra-se
bem clara numa conferência que dá a 20 de Fevereiro
de 1922, na Sociedade de Geografia de Lisboa, a propósito
do Padroado Português do Oriente quando diz: “o indígena
ouve melhor a voz do Evangelho que tiro das espingardas, e uma
vez conquistado o seu coração pelo sentimento religioso,
não há a recear sublevações”
.
D. José, o educador
Em diversas passagens dos seus escritos, D. José da Costa
Nunes advoga o ensino da história e da língua portuguesa
como parte essencial das Missões, aliás como estipulava
a lei portuguesa então em vigor (Decreto 6322, art. 32º).
Tenhamos em atenção que, desde a instalação
dos primeiros missionários, as principais tarefas pastorais
como a confissão, a pregação e a administração
dos sacramentos ou eram feitas em português, o que causava
naturais dissabores e uma incorrecta aprendizagem, ou eram executadas
por curas e clérigos locais, recrutados pelos missionários
para serem mediadores linguísticos . Mas, enquanto defende
a excelência da sua pátria, respeita as diferentes
realidades locais. Assim, defende que o primeiro dever dos missionários
é relacionarem-se e aprenderem os costumes e hábitos
autóctones, o que incluía a aprendizagem da língua
materna dos nativos. Numa pastoral redigida em Agosto de 1924,
o bispo de Macau e Timor reflecte sobre a importância da
língua tetum, única forma de unificar as mais de
30 línguas diferentes faladas em Timor. Só depois
das crianças aprenderem a ler e a escrever na língua
materna seria possível reeducá-las numa estrangeira,
como seria o caso do português.
A partir daqui, compreendemos como era crucial o recrutamento
de indígenas para o serviço da Igreja Católica,
como advogava o Papa Pio XI. A estatística, com efeito,
era nefasta ao espírito proselítico de um catolicismo
fechado e europeísta: nos inícios do século
XX, havia no mundo mais de um bilião de pagãos para
converter e apenas 13 mil missionários, i.e., cada padre
teria a seu cargo 85 mil pagãos . O único remédio
era, pois, utilizar os recursos humanos locais como mediadores
entre a fé cristã e as populações
nativas. Como afirma D. José: “Na verdade, só
com clero nativo se completará a conversão do mundo
pagão. O nativo sente-se mais atraído para o padre
indígena, do que para nós. Não tenhamos ilusões
a este respeito, nem estranhemos o facto” .
D. José, o humanista
Nas suas reflexões sobre a relevância da educação
e da instrução como veículos da expansão
religiosa, D. José expressa o seu pensamento sobre a função
social e cultural das missões portuguesas. Com efeito,
uma das principais tarefas dos missionários deverá
ser trazer para a civilização as populações
locais. Neste contexto, louva o trabalho desenvolvido por 3 religiosas
Canossianas em Timor, em que numa festa em sua honra assistira
a cânticos e récitas cantadas na língua portuguesa
por crianças timorenses, que apenas tinham tido 4 meses
de ensino. É muito interessante o comentário feito
pelo prelado: “Ora isto, se por um lado põe em relevo
o zelo e a competência destas prestimosas colaboradoras,
por outro indica que o indígena […] não é
incivilizável” . Como nos apercebemos, o objectivo
do proselitismo religioso é a modernização
das populações mais atrasadas. Mas a filosofia que
suporta esta postura torna D. José da Costa Nunes um homem
avançado para a sua época, no âmbito de um
humanismo tolerante. De facto, o fim último da modernização
dos povos nativos não deve ser a satisfação
das necessidades comerciais e industriais dos países mais
desenvolvidos, mas sim fornecer os meios necessários para
que os autóctones possam sobreviver condignamente, independentemente
dos apoios externos. Em 1937, D. José chegava mesmo a criticar
a política externa da Europa: “conheço colónias,
que se dizem muito desenvolvidas, muito progressivas, muito ricas.
São-no, de facto. Mas as riquezas estão nas mãos
de alguns europeus, ao passo que a população nativa
vegeta no mesmo conforto e ignorância dos tempos primitivos.
Isto não é colonizar; é explorar. E mal vai
ás nações, que marcham tal caminho, numa
época, como a que estamos vivendo hoje” . Este prelado
apresenta um pensamento ainda mais humanista, quando escreve:
“Instruamos, pois, o indígena […] respeitando,
porém, os seus usos e costumes, desde que não colidam
com a moral […] numa palavra, preparemos o indígena
para uma vida superior à que hoje leva, mas que todo este
trabalho de formação reverta a favor do preto, e
não propriamente, do branco” .
É o seu respeito pelos diferentes hábitos e costumes
que justificam que D. José da Costa Nunes tenha sido idolatrado
pelos seus diocesanos. Em 1915, numa crónica que redige
para a Revista Oriente, manifesta muito bem esta sensibilidade
para com as diferenças culturais: “O oriente, visto
com uns olhos europeus, é um absurdo, um paradoxo, o contrário
de todos os princípios, leis e etiquetas, porque se regem
as sociedades do ocidente que se dizem cultas”. Assim, ele
exemplifica com a trança de cabelo comprido que os homens
usam que difere das mulheres que usam o cabelo totalmente apanhado
e que usam calças; os livros que se lêem da esquerda
para a direita, os alunos que estão de costas voltadas
para o professor em sinal de respeito e, ainda, a cor do luto
que é o branco e não o preto ocidental. E o Cardeal
remata estes comentários com uma nota excelente. Se na
China, a mulher…é homem, a direita é esquerda,
a proa é popa, o fim é o princípio, uma grosseria
é uma atenção, o branco é preto?...
Positivamente, isto cá pelo Oriente anda tudo trocado,
marcha tudo às avessas […]. Mas, bendita anomalia,
que nos permite gozar em Dezembro um sol belo e acariciador”
.
D. José, o jornalista
As primeiras manifestações jornalísiticas
do cardeal surgem durante logo desde os seus tempos de estudante,
em Angra. Durante o período de 1899 a 1902, torna-se um
participante activo do jornal A Voz, semanário publicado
na vila da Madalena. Nestes escritos, salientam-se dois tipos
de discursos. Um deles de tipo claramente informativo, onde noticia
pequenos sucessos do quotidiana da freguesia da Candelária:
a chegada de determinadas famílias à freguesia gozando
das férias do verão; acidentes com barcos de pesca,
casamentos efectuados, doenças que grassavam na Candelária,
festas e romarias, etc. Vejam-se os dois exemplos seguintes:
“Fixou residência nesta freguesia
a exmª família do reverendo Manuel Alfredo Goulart,
digno cura desta Igreja Paroquial”;
“Tem-se desenvolvido nesta freguesia, a
epidemia do sarampo, principalmente na povoação
do Monte. Até à data, felizmente, não têm
aparecido vítimas” .
Um outro tipo de escrita assume um carácter
manifestamente mais literário e até poético:
“Era o anoitecer de um belo dia primaveril. O sol estava
prestes a imergir no ocidente e a baça claridade crepuscular
espargia-se pela terra em ondulações, que causava,
tristeza, que despertavam saudades. Edénicas paragens exibiam
uma perspectiva bel, encantadora! […] Bem junto a mim, gentis
florinhas alcatifavam o solo […] Eram esplêndidos,
encantadores os retoques, que esmaltavam o panorama” .
Já em Macau, funda em 1915 a revista Oriente,
com uma periodicidade mensal, a qual dirige durante todo este
ano. Aqui, o Cardeal discorre sobre assuntos da actualidade, como
é o caso das crónicas que publica em 1915 sobre
a I Grande Guerra, as eleições nacionais, a greve
dos tipógrafos do Porto, entre outros assuntos.
Também é um colaborador do Boletim Eclesiástico
da Diocese de Macau, onde publica diversas crónicas de
viagem.
Desde os primeiros escritos, o Cardeal revela um apreço
especial pela utilização de pseudónimos diversos.
No jornal A Voz, assina com o nome de Albino, na revista Oriente
como Mário ou como Sílvio. Ainda na década
de 1950, escreve umas cartas de Roma sob o pseudónimo de
Aliquis.
D, José, o nacionalista
Nesta vertente, o cardeal mostra-se sempre orgulhoso da nação
e da história portuguesas. Numa conferência que dá
a 20 de Fevereiro de 1922 na Sociedade de Geografia de Lisboa
a propósito do Padroado Português do Oriente, ele
afirma. “Eu revolto-me contra alguns escritores e historiadores
nacionais do último quartel do século passado, que,
numa ânsia destruidora, se empenham em amesquinhar os feitos
portugueses dos séculos anteriores, desvirtuando […]
essa epopeia brilhante, que tanto lustre dá à nação
portuguesa” .
Julgo que é neste contexto que devemos compreender o apoio
que ele dá ao poderes do Estado Novo, também eles
com uma filosofia defensora da pátria e da história
portuguesas. No discurso que fez no 10º aniversário
da Revolução Nacional (1926-1936), publicado no
Jornal A Voz de Macau, em 1936, ele afirma: “todos nós
reconhecemos, no senhor Presidente da República e no senhor
Presidente do Ministério, dois chefes categorizados, que
vão encaminhando a Nação para destinos mais
gloriosos […] Carmona é a figura prestigiosa, perante
a qual todos se curvam respeitosos; Salazar é o homem de
acção calma, que sabe o que quer e sabe para onde
vai” . Na sua apologia da política salazarista, ele
advoga a competência financeira do ministro português,
a sua habilidade política e o seu investimento nas áreas
da cultura, sociedade e educação nacionais. Diz
D. José: Salazar “viu ruínas, sangue, incêndios
e, sem sair do silêncio do seu gabinete, delineou, após
longo estudo e meditação, as directrizes de um novo
estado de coisas, que hábeis colaboradores vão pondo
em execução, sob as vistas sempre atentas do chefe.
Dado o feitio individualista da nossa raça, nem todos suportam
essa vigilância assídua, mas ela é necessária,
sob pena de tudo naufragar, e possivelmente numa catástrofe
tremenda” .
D. José, o picoense
Em várias passagens dos seus escritos, D. José mostra-se
sempre um nostálgico dos seus Açores e do seu Pico.
As saudades são um tema recorrente. Regressa ao Pico pela
primeira vez em 1913, 11 anos depois de ter saído da ilha;
em 1931, onde passa por Ponta Delgada, cidade onde dá uma
conferência sobre o Oriente no Liceu Antero de Quental.
Mais tarde, em 1953, celebra as suas Bodas de Ouro de padre missionário
mais uma vez na sua ilha natal. Mas estas deslocações
pareciam-lhe sempre breves. Em 1967, numa carta que escreve de
Roma ao seu amigo o Padre João Vieira Xavier Madruga, afirma:
“Depois de 1893, só tenho ido ao Pico de passagem,
mas essas pedras negras atraem-me sempre .
O seu amor à terra é comprovado pelo gosto que teve
em fundar a casa de S. José, confiada às Franciscanas
Hospitaleiras da Imaculada Conceição. O objectivo
foi, como ele próprio confessa no testamento que faz em
1970, “perpetuar a memória de meus Saudosos Pais
[…] e beneficiar o povo da Candelária, no meio do
qual me orgulho de ter nascido
Em suma, estamos perante uma personalidade fascinante,
que se destacou pelo contributo que deu ao mundo. No Oriente,
as estatísticas comprovam que o seu esforço pastoral
foi um sucesso. À frente de uma diocese com mais de 8 milhões
de habitantes, dos quais apenas 40.000 eram católicos,
o Cardeal D. José da Costa Nunes fez um trabalho notável
em prol do catolicismo. Para além de gerir 8 colégios,
2 asilos, 1 seminário, 1 instituto de artes e ofícios,
1 escola de artes e ofícios, 40 escolas com mais de 2.000
alunos dos 2 sexos e conciliar as tarefas de 65 missionários,
58 religiosas, 124 professores e 25 catequistas, ele conseguiu
duplicar o nº de praticantes católicos (de 29.628
para 50.916), aumentar o nº de baptismos, que passou de 2.903
para 9.147 (mais 6.244) e angariar mais recursos humanos, designadamente
atraindo mais 75 religiosas, 23 missionários, 207 professores
e 348 catequistas . A fundação de um colégio
para rapazes chineses em 1931, a cargo dos Padres Salesianos,
e de um colégio feminino (S. Rosa de Lima) sob a responsabilidade
das Franciscanas Missionárias de Maria, a protecção
que concedeu à Acção Católica, a fundação
da Missão de Nª Srª de Fátima, a fundação
do Convento de Carmelitas Contemplativas e de uma Casa de Regeneração,
sob a égide das irmãs de Nª Srª dos Anjos,
são apenas alguns dos exemplos do grandioso legado que
D. José deixou no Oriente que tanto estimou.
Acima de tudo, é admirável como o seu espírito
foi, ao mesmo tempo, conservador e modernista, apresentando um
equilíbrio inteligente e sensível que só
os grandes homens manifestam.
Voltar
para a página inicial
|