CONFERENCIA 125 ANOS DO NASCIMENTO
DO CARDEAL D. JOSÉ DA COSTA NUNES


Corria o ano de 1880, prestes a iniciar a época primaveril, quando a 15 de Março o casal José da Costa Nunes e Francisca Felizarda de Castro receberam a benesse do nascimento do seu terceiro filho. A alegria deve ter sido muito grande, porque o primeiro rebento deste casal, Cândido da Costa Nunes, tinha falecido 3 anos antes, apenas com 1 ano e 4 meses de idade. Assim, o novo bebé, baptizado com o nome de José da Costa Nunes, tornava-se o filho rapaz mais velho desta família moradora na freguesia da Candelária.
Nos anos seguintes, o jovem José e a sua irmã mais velha, Ana Felizarda, assistiram ao aumentar da prole paterna em mais 6 elementos, todos eles baptizados com o sobrenome paterno, Costa Nunes: 4 rapazes (João, que nasceu em 1882, 2 anos depois de José; Manuel nascido em 1886; Cândido, n. em 1890, que recebeu o nome do varão falecido; e Francisco, n. em 1892) e 2 meninas (Isabel Felizarda, nascida em 1884; e Francisca Felizarda, a mais nova da família, que nasceria em 1896, 16 anos depois de José).
Como vemos, o agregado familiar do jovem José era grande, composto por 10 pessoas os pais e os 8 filhos que sobreviveram até à idade adulta, factor que terá sido fundamental para o seu futuro. Como era usual desde há muito, a vida eclesiástica era uma das poucas saídas profissionais masculinas possíveis nas épocas passadas, muito utilizada por múltiplas famílias na tentativa de aliviarem a pesada carga do sustento de uma descendência numerosa, como era o caso. A entrada para o clero, secular ou regular (recurso muito utilizado para a descendência feminina, uma vez que o matrimónio também era exigente do ponto de vista económico pela obrigatoriedade do dote à noiva), era uma estratégia que garantia a sobrevivência económica de muitas famílias. Com efeito, para lá da vida religiosa, o celibato feminino e, desde finais do século XVIII, a emigração (primeiro para o Sul do Brasil e depois para o Canadá e E.U.A.) foram os meios mais utilizados pelas famílias açorianas para garantirem a sua subsistência. Por isso, é muito interessante observar como a família dos Costa Nunes é um exemplo perfeito desta realidade insular de finais do século XIX e inícios do século XX: os 4 irmãos de José emigram para os Estados Unidos da América, apenas uma irmã contrai casamento e as restantes 2 irmãs ficam solteiras, o que impedia a dispersão dos bens familiares que, de contrário, seriam escoados no dote matrimonial e, ao mesmo tempo, garantia companhia aos pais nos tempos da velhice. Esta competência feminina, que se espelhava pela necessidade da administração das casas com grandes agregados familiares, é uma tónica permanente. A parentela feminina (filhas, netas, sobrinhas e primas) é utilizada como “dama de companhia” dos elementos masculinos. Natural terá sido, pois, que a irmã mais nova de José, Francisca Felizarda da Costa Nunes, tenha sido o seu principal apoio familiar, acompanhando-o em Goa e em Roma.
Mas para lá do contexto económico, o ambiente familiar também pressionou a vida futura de José. A sensibilidade cristã da sua família, que o mesmo, alguns mais tarde, caracterizará como “modesta mas rica de sentimentos religiosos” terá tido uma influência marcante.
A preocupação dos pais de José com o seu futuro profissional foi, em grande parte, aliviada pela vontade que, desde muito cedo, este jovem demonstrou em abraçar a vida religiosa, como mais tarde confessará no seu testamento, afirmando que “desejei desde criança ser padre”.
Neste aspecto, a pretensão de José da Costa Nunes é um reflexo de mais de 400 anos da história picoense.

Do Pico, muitos deles sonharam com a missionação em outras paragens. Nos séculos XIX e inícios do XX, entre os 45 picarotos que desenvolvem actividades pastorais fora dos Açores, destaca-se o número daqueles que se dirigiram para os E.U.A., 27. Em segundo lugar, era o misticismo oriental que cativava mais jovens, 14. O Brasil (2 picoenses), África (1) e o Canadá (1) eram manifestamente menos apelativos.

Este comportamento que alimentava as hostes sacerdotais resultava de tendências pessoais, aquilo que hoje em dia poderíamos designar de “vocação”, e de pressões familiares, mas também expressava uma corrente hereditária de influenciava familiares próximos e vizinhos. Há uma tendência para, dentro da mesma família, diversos membros masculinos se dedicarem à vida religiosa, numa passagem de testemunho que, geralmente, passava de tio para sobrinho, com vários graus de afinidade. Este facto é visível na família dos Costa Nunes, pois José era sobrinho em 2º grau do Padre António da Glória, que foi cura e vigário da Candelária entre os anos de 1809 a 1856. Por sua vez, nesta mesma freguesia, a influência de José da Costa Nunes levou a que alguns dos seus descendentes fossem atraídos para o sacerdócio. É o caso dos padres Áureo da Costa Nunes e Castro; Manuel da Costa Nunes; e António Maria Nunes da Costa, sobrinhos de D. José e do bispo Jaime Garcia Goulart, seu primo (primo pela avó paterna, D. Isabel Emília da Costa, irmã do pai do cardeal, e avó materna, D. Isabel Felizarda de Castro, irmã da mãe de D. José).

[Na totalidade, D. José levou 11 rapazes para estudarem no Seminário de Macau (8 terceirenses, 2 picoenses e 1 faialense), 9 dos quais seguiram a carreira eclesiástica].


Assegurada a vocação para o sacerdócio de José da Costa Nunes, era necessário facultar-lhe a instrução necessária. É curioso ver a nota redigida pelo pároco da freguesia da Candelária, o padre Manuel Moniz Madruga, atestando a probidade de José, que considera ter uma “vida exemplar frequentando com edificante piedade, rara numa idade de 13 anos, os sacramentos da Penitência e Eucaristia em todas as primeiras sextas-feiras do mês desde a primeira comunhão, e que tem dado sinal de muita vocação para a vida eclesiástica revelando uma inteligência nada vulgar para as letras” . Este é o primeiro registo escrito que conhecemos que realça os dons para a oralidade e para a escrita do futuro cardeal, características que, pelos vistos, já causavam alguma estranheza num jovem tão novo.
Neste sentido, ainda uma criança de apenas 13 anos de idade, é enviado para o Seminário Episcopal, localizado na ilha Terceira, onde continuaria a sua instrução escolar. Depois de 8 anos de estudo nesta ilha, recebe a prima tonsura e as ordens menores. Durante todo este período de formação, o jovem José continuou a salientar-se pelas suas qualidades intelectuais e morais, que seriam determinantes na alteração do rumo que a sua vida teria aos 21 anos de idade. Com efeito, em 1902, o vice-reitor do seminário, Dr. João Paulino de Azevedo e Castro, também natural do Pico, da vila das Lajes, é nomeado bispo de Macau. O percurso brilhante de José, que o destacava entre os demais seminaristas, leva a que o novo bispo o convide a acompanhá-lo a Macau, na qualidade de seu secretário particular. Depois de alguma resistência, pois o convite obrigá-lo-ia a alterar completamente o trilho que tinha traçado para si, José decide aceitar o desafio. Assim, depois da primeira etapa da viagem no navio Açor o levar até Lisboa, com os 22 anos já feitos, parte para Macau a 23 de Março de 1902, onde chegará três meses (4 de Junho de 1902).
Todo o ano de 1903 é dedicado a completar a sua formação, pois faltavam-lhe os três graus para a obtenção do presbiterado, o que alcança em Julho deste ano, celebrando a sua missa nova na igreja de S. Agostinho, em Macau.
No início do verão seguinte, em 1904, parte para as missões de Singapura e Malaca como secretário do bispo D. João Paulino. Talvez o contacto pessoal com a realidade local o tenha feito alterar os seus objectivos. Na verdade, muitos anos mais tarde, o Cardeal confessa publicamente que, depois das primeiras resistências, apenas tinha acedido a ir para Macau com o propósito de ganhar experiência para depois regressar à Europa e ingressar na Universidade Gregoriana, para aqui ser professor. Ora, pensando ficar apenas 2 anos em Macau acaba por permanecer cerca de meio século. Deste modo, vemos como os desafios que encontrou foram demasiado apelativos para que os abandonasse em prol da vida cosmopolita europeia, como tinha pensado primeiro. Acreditamos, pois, que o apelo missionário foi demasiado forte para a personalidade do recém sacerdote. Neste sentido, a sua sensibilidade missionária prolonga a tradição secular portuguesa, cujas origens remontam ao século XII, em pleno período de reconquista Cristã, em que se tentavam converter os mouriscos à medida que se avançava para o sul do futuro Portugal. A segunda etapa missionária data dos Descobrimentos. Não há dúvida que um dos principais objectivos da expansão Portuguesa foi a divulgação da fé cristã, considerado pelo poder político como uma estratégia fundamental para o desenvolvimento e consolidação das relações económicas, principalmente das populações costeiras. A tarefa era, aliás, quase uma obrigação moral dos descobridores portugueses, uma vez que se acreditava que a Índia tinha um núcleo de cristãos que sobrevivera desde a evangelização do apóstolo S. Tomé (sobreviventes, portanto, de 16 séculos) e que em África existia o reino cristão do Prestes João. Assim, era uma incumbência natural reatar os laços entre estas populações cristãs, isoladas no seio de muçulmanos e hindus, e os europeus seguidores da verdadeira fé. O principal contributo para a divulgação da fé romana veio das ordens mendicantes, franciscanos e dominicanos, e depois dos Jesuítas, Ordem criada em 1534 (ano de elevação de Angra a cidade e criação da Sé de Angra). A convite de D. João III, os jesuítas desenvolvem uma acção missionária potente que, ainda no decurso do século XVI, se espalham por Macau e Japão, e que tem como principal figura Francisco Xavier, que desembarca em Goa em 1542, cuja vida foi muito inspiradora para D. José. O século XVI é, sem dúvida, um período áureo para a missionação no Oriente. No século seguinte, a concorrência dos outros países europeus, nomeadamente a Inglaterra, a Holanda e França, faz com que Portugal comece a perder poder económico e político. Por isso, tenta manter, com particular vigor, supremacia cultural, para o que a religião desempenhava um papel crucial. Apesar deste intento, Portugal não tinha condições para garantir a evangelização de toda a Ásia. Ao mesmo tempo, à medida que os novos tempos divulgavam novas referências, ligadas às correntes racionalistas e positivistas, o espírito das missões ia sendo alvo de diversas críticas oriundas de vários sectores da sociedade portuguesa, de que a expulsão dos Jesuítas, pelo Marquês de Pombal em 1759, é o símbolo mais ilustrativo e cujo corolário atinge-se em 1834, quando as leis liberais ordenam a abolição de todas as congregações e associações religiosas, nacionalizando todos os seus bens (44 anos depois de França). As consequências desta decadência são desastrosas para o vigor da religião cristã no Oriente, embora em escalas diferentes. Assim, se em 1740, Timor tinha 18 dominicanos responsáveis pelas missões, em 1811 já não tem nenhum. Goa também assiste ao relaxamento da prática religiosa, principalmente nos conventos e mosteiros, embora consiga assegurar algum serviço pela existência de um clero autóctone que, entretanto, tinha sido formado.
A recuperação da missionação no Oriente só se iniciará no século XIX, mas agora sustentada por interesses diferentes. Se, na primeira fase, as missões visavam solidificar as relações comerciais entre a Europa e o Oriente (comprar e vender produtos: relembro a introdução na Europa do chá, do milho, do cacau, o crescente uso de açúcar, a canela e outras especiarias que tanto influenciaram a gastronomia portuguesa e açoriana) agora era necessário encontrar locais capazes de fornecer as matérias-primas imprescindíveis para a indústria que então se estava a desenvolver na Europa. Para tal, era necessário estabelecer relações amistosas com as populações que habitavam já não apenas as zonas marítimas, mas o interior, e fortalecer os elos com todos os nativos. Como se compreende, a religião tinha, no estabelecimento destes laços, um papel fundamental. E a principal ideologia que sustentava tais elos defendia que estes povos distantes mereciam conhecer a civilização verdadeira, ou seja, a europeia. Assim, as missões continuam a ser uma forma de expandir a fé cristã, mas adquirem uma competência humanitária, visando o progresso das civilizações consideradas mais atrasadas. Lentamente, os homens que se dedicavam à missionação são de novo respeitados por uma sociedade que adere ao espírito romântico oitocentista. A consequência mais visível desta realidade é o renascimento das congregações: em 1901, o Estado Português reconhece a existência de 45 associações religiosas, 7 delas dedicadas exclusivamente às missões. A implantação da República em 1910 não prejudicará este renascimento, pois depois das primeiras convulsões e oposições, os republicanos apercebem-se como as missões eram importantes para divulgar o nome de Portugal e garantir a manutenção das respectivas colónias, ou seja, compreendem que as missões asseguravam a riqueza nacional e o prestígio internacional. Este espírito será mantido ao longo de todo o Estado Novo, apesar das dificuldades do país em assegurar todas as dioceses que mantinha sob o seu padroado (veja-se a concordata de 1950, em que o Presidente da República deixa de apresentar os bispos das dioceses de Mangalor, Quilon, Cochim, São Tomé de Meliapor e Bombaim, todas na Índia; Goa que Portugal perde para União Indiana em 1961 e, mais recentemente, a perda de Macau, com a passagem da administração deste território à China, em 1999, o derradeiro sobrevivente da expressão portuguesa no Oriente).

A vida de D. José da Costa Nunes acompanha, precisamente, os últimos sucessos, ou seja, beneficia do patrocínio que o Estado Português concedia à prática missionária, como instrumento de valorização nacional. Assim, ele é o herdeiro de oito séculos de história portuguesa ligada ao proselitismo religioso que, no arquipélago dos Açores, tem algumas figuras de destaque, logo desde os primeiros tempos do povoamento. No século XVI realçam-se D. Frei João Estaco, terceirense que se torna bispo de Puebla de Los Angeles, no México; e D. Luís Figueiredo de Lemos, de S. Miguel, bispo de Funchal. No século XVII, o micaelense D. Frei Afonso Enes de Benevides, torna-se bispo de Meliapor; D. Frei Cristóvão da Silveira, natural de Angra, torna-se primaz do Oriente e D. Frei Bartolomeu do Pilar, de S. Jorge, bispo do Grão-Pará, no Brasil. No século XVIII, sobressaem D. António Taveira Brum da Silveira, natural da Horta, arcebispo de Goa e primaz do Oriente, e D. Manuel de Sousa Enes, natural da ilha de S. Jorge, bispo de Macau.

Desde os seus primeiros tempos como missionário no Oriente, o sacerdote José da Costa Nunes continua a destaca-se pelas suas qualidades humanas e éticas. A sua carreira sacerdotal tem um percurso ascendente rápido, que passa pela sua nomeação como Vigário Geral da Diocese de Macau em 1906, como Governador do Bispado em 1907 e como Vigário Capitular em 1918. Durante este período, as dificuldades que terá sentido, para lá das normais relacionadas com a actividade de evangelização, foram acrescidas pelas críticas que a religião em geral e os sacerdotes em particular sofriam por parte dos espíritos republicanos, fortalecidos pela implantação da República Portuguesa em 1910. Mais uma vez, foram as suas capacidades morais e a sua vertente diplomática, donde se destaca a sua eloquência, que lhe granjearam cada vez maior prestígio e que o levam a ser nomeado pelo Papa Bento XV, em 1920, bispo de Macau, dignidade que aceitou com alguma relutância. Aliás, esta mesma resistência chegou a formalizá-la por escrito, numa carta que dirige ao Núncio Apostólico em Lisboa, D. Aquiles, na qual lhe pede que seja aceite em Roma a sua renúncia, por considerar “as graves responsabilidades que assumiria, se aceitasse um cargo incomportável com a debilidade das minhas forças” .
A insistência papal remove as resistências de D. José que se vê forçado a aceitar o novo cargo. É neste momento que se vê a profunda ligação que tinha mantido ao longo de todos estes anos à sua terra natal. Com efeito, em Novembro de 1921 recebe a sagração episcopal na matriz da Horta. Regressa a Macau em 1922, dirigindo esta diocese por cerca de 18 anos. As dificuldades deste governo foram muitas: estamos a falar de uma área extensa, de Macau a Timor, com milhões de habitantes habituados a uma fé, costumes e hábitos diferentes. Mas a habilidade inata de D. José da Costa Nunes permitiu-lhe lidar e ultrapassar com sucesso os múltiplos problemas com que se deparou, nomeadamente os de nível financeiro, essenciais para a sobrevivência da diocese; e os relacionados com a manutenção de um clero secular e regular católico em zonas tão hostis e inóspitas. É necessário não esquecer que D. José viveu num período de grandes vicissitudes políticas nacionais e internacionais: no plano interno, destacaria a instauração da República Portuguesa em 1910, a implantação do Estado Novo em 1926 e a Revolução de 25 de Abril, em 1974, dois antes da sua morte; no plano externo salientaria as alterações dos acordos entre o Estado Português e Roma, no que respeita ao Padroado Português no Oriente (Acordos de 15 de Abril de 1928 e de 11 de Abril de 1929 e a Concordata de 1940), a eclosão das 1ª e 2ª Guerras Mundiais; a independência da União Indiana, na década de 1950, o Concílio Vaticano II (1962-1965), de que será membro da Comissão Central Preparatória; e a instauração da Guerra Fria. Acrescentemos ainda que ele assiste e acompanha a obra delineada por 7 Papas , legítimos herdeiros de S. Pedro. Ora, a forte personalidade de que D. José era dotado, associada à sua vasta cultura e ao seu conhecimento do mundo que o rodeava, permitiu-lhe destacar-se por muitos momentos e contribuíram para o reconhecimento do seu valor não só em Portugal, mas também no seio da Igreja de Roma. Por isso, reconhecido no seu país e internacionalmente, teve uma carreira brilhante. Em 1940, é nomeado Arcebispo da Sé Metropolitana, Primacial e Patriarcal de Goa, assumindo o título de Primaz do Oriente e Patriarca das Índias Orientais. Em 1946, é condecorado pelo governo português com a Grã-Cruz da Ordem do império e em 1953 com a Grã-Cruz da Ordem de Cristo. Neste mesmo ano de 1953, é nomeado Arcebispo Titular de Odessa, e decide, depois de 50 anos de actividade pastoral no Oriente, renunciar ao seu cargo episcopal. Passando a residir em Roma, a sua figura não é esquecida pela Cúria papal, a qual serve por mais 23 anos. Assim, em 1962 é elevado à dignidade de Cardeal pelo Papa João XXIII. A deferência que a Santa Sé tinha para com D. José é ainda visível em outros 3 momentos: em 1964, quando é o enviado papal ao IV Centenário das Missões da Companhia de Jesus em Macau; em 1967, quando é o delegado de Roma às Festas Jubilares de Nª Srª de Fátima e, finalmente, em 1976 quando recebe a visita pessoal do Papa Paulo VI, estando já no seu leito de morte em Roma, cidade onde é sepultado, na igreja de S. António dos Portugueses, como pedira no seu testamento. Em Junho de 1997, o seu corpo é trasladado para a sua ilha natal, ficando sepultado na igreja da Candelária.
Como vemos, D. José da Costa Nunes tem uma vida longa e recheada de desafios e conquistas, umas mais fáceis que outras. A sua resistência física e psicológica permitiram-lhe gozar de 50 anos de estadia no Oriente e 96 anos de vida. Decerto que o facto de ter nascido nos bons ares da ilha do Pico é um factor a considerar nesta longevidade. Para além desta marca genética, uma vida regrada e metódica parece ter contribuído ainda mais para a sua excelente saúde ao longo de tantos anos: comia pouco, repousava sempre um nº de horas certas, exercitava-se fisicamente, nomeadamente passeando todos os dias cerca de 3 a 12 Km e mantendo um quotidiano sem vícios, nomeadamente o do tabaco, com o qual cortou radicalmente em 1925.

Personagem complexa pela confluência de interesses e actividades, gostaria de destacar algumas da suas mais interessantes vertentes.

D. José, o religioso
Na sua dimensão religiosa, D. José da Costa Nunes era um firme defensor da estratégia missionária. Esta teria que ser edificada no seio do Evangelho. Numa das suas primeiras pastorais, datada de 15 de Junho de 1922, o recém bispo regulamenta o comportamento do cristão, que deveria ser “honesto, puro, dócil aos ensinamentos da Igreja, compassivo com as misérias alheias, amante da justiça, da verdade e do bem, numa palavra tem de colocar-se adentro das normas traçadas pelo Evangelho, porque é neste código divino que se estriba a moral individual e a moral social”. Mais à frente, acrescentava: “Diz-se, e com razão, que a sociedade moderna atravessa uma dolorosa crise moral, cujas consequências deploráveis todos nós apalpamos. Há só um meio de a curar: é recristianizá-la” . A religião era, pois o instrumento da paz no mundo e do purismo ético. Esta posição encontra-se bem clara numa conferência que dá a 20 de Fevereiro de 1922, na Sociedade de Geografia de Lisboa, a propósito do Padroado Português do Oriente quando diz: “o indígena ouve melhor a voz do Evangelho que tiro das espingardas, e uma vez conquistado o seu coração pelo sentimento religioso, não há a recear sublevações” .

D. José, o educador
Em diversas passagens dos seus escritos, D. José da Costa Nunes advoga o ensino da história e da língua portuguesa como parte essencial das Missões, aliás como estipulava a lei portuguesa então em vigor (Decreto 6322, art. 32º). Tenhamos em atenção que, desde a instalação dos primeiros missionários, as principais tarefas pastorais como a confissão, a pregação e a administração dos sacramentos ou eram feitas em português, o que causava naturais dissabores e uma incorrecta aprendizagem, ou eram executadas por curas e clérigos locais, recrutados pelos missionários para serem mediadores linguísticos . Mas, enquanto defende a excelência da sua pátria, respeita as diferentes realidades locais. Assim, defende que o primeiro dever dos missionários é relacionarem-se e aprenderem os costumes e hábitos autóctones, o que incluía a aprendizagem da língua materna dos nativos. Numa pastoral redigida em Agosto de 1924, o bispo de Macau e Timor reflecte sobre a importância da língua tetum, única forma de unificar as mais de 30 línguas diferentes faladas em Timor. Só depois das crianças aprenderem a ler e a escrever na língua materna seria possível reeducá-las numa estrangeira, como seria o caso do português.
A partir daqui, compreendemos como era crucial o recrutamento de indígenas para o serviço da Igreja Católica, como advogava o Papa Pio XI. A estatística, com efeito, era nefasta ao espírito proselítico de um catolicismo fechado e europeísta: nos inícios do século XX, havia no mundo mais de um bilião de pagãos para converter e apenas 13 mil missionários, i.e., cada padre teria a seu cargo 85 mil pagãos . O único remédio era, pois, utilizar os recursos humanos locais como mediadores entre a fé cristã e as populações nativas. Como afirma D. José: “Na verdade, só com clero nativo se completará a conversão do mundo pagão. O nativo sente-se mais atraído para o padre indígena, do que para nós. Não tenhamos ilusões a este respeito, nem estranhemos o facto” .

D. José, o humanista
Nas suas reflexões sobre a relevância da educação e da instrução como veículos da expansão religiosa, D. José expressa o seu pensamento sobre a função social e cultural das missões portuguesas. Com efeito, uma das principais tarefas dos missionários deverá ser trazer para a civilização as populações locais. Neste contexto, louva o trabalho desenvolvido por 3 religiosas Canossianas em Timor, em que numa festa em sua honra assistira a cânticos e récitas cantadas na língua portuguesa por crianças timorenses, que apenas tinham tido 4 meses de ensino. É muito interessante o comentário feito pelo prelado: “Ora isto, se por um lado põe em relevo o zelo e a competência destas prestimosas colaboradoras, por outro indica que o indígena […] não é incivilizável” . Como nos apercebemos, o objectivo do proselitismo religioso é a modernização das populações mais atrasadas. Mas a filosofia que suporta esta postura torna D. José da Costa Nunes um homem avançado para a sua época, no âmbito de um humanismo tolerante. De facto, o fim último da modernização dos povos nativos não deve ser a satisfação das necessidades comerciais e industriais dos países mais desenvolvidos, mas sim fornecer os meios necessários para que os autóctones possam sobreviver condignamente, independentemente dos apoios externos. Em 1937, D. José chegava mesmo a criticar a política externa da Europa: “conheço colónias, que se dizem muito desenvolvidas, muito progressivas, muito ricas. São-no, de facto. Mas as riquezas estão nas mãos de alguns europeus, ao passo que a população nativa vegeta no mesmo conforto e ignorância dos tempos primitivos. Isto não é colonizar; é explorar. E mal vai ás nações, que marcham tal caminho, numa época, como a que estamos vivendo hoje” . Este prelado apresenta um pensamento ainda mais humanista, quando escreve: “Instruamos, pois, o indígena […] respeitando, porém, os seus usos e costumes, desde que não colidam com a moral […] numa palavra, preparemos o indígena para uma vida superior à que hoje leva, mas que todo este trabalho de formação reverta a favor do preto, e não propriamente, do branco” .
É o seu respeito pelos diferentes hábitos e costumes que justificam que D. José da Costa Nunes tenha sido idolatrado pelos seus diocesanos. Em 1915, numa crónica que redige para a Revista Oriente, manifesta muito bem esta sensibilidade para com as diferenças culturais: “O oriente, visto com uns olhos europeus, é um absurdo, um paradoxo, o contrário de todos os princípios, leis e etiquetas, porque se regem as sociedades do ocidente que se dizem cultas”. Assim, ele exemplifica com a trança de cabelo comprido que os homens usam que difere das mulheres que usam o cabelo totalmente apanhado e que usam calças; os livros que se lêem da esquerda para a direita, os alunos que estão de costas voltadas para o professor em sinal de respeito e, ainda, a cor do luto que é o branco e não o preto ocidental. E o Cardeal remata estes comentários com uma nota excelente. Se na China, a mulher…é homem, a direita é esquerda, a proa é popa, o fim é o princípio, uma grosseria é uma atenção, o branco é preto?... Positivamente, isto cá pelo Oriente anda tudo trocado, marcha tudo às avessas […]. Mas, bendita anomalia, que nos permite gozar em Dezembro um sol belo e acariciador” .

D. José, o jornalista
As primeiras manifestações jornalísiticas do cardeal surgem durante logo desde os seus tempos de estudante, em Angra. Durante o período de 1899 a 1902, torna-se um participante activo do jornal A Voz, semanário publicado na vila da Madalena. Nestes escritos, salientam-se dois tipos de discursos. Um deles de tipo claramente informativo, onde noticia pequenos sucessos do quotidiana da freguesia da Candelária: a chegada de determinadas famílias à freguesia gozando das férias do verão; acidentes com barcos de pesca, casamentos efectuados, doenças que grassavam na Candelária, festas e romarias, etc. Vejam-se os dois exemplos seguintes:

“Fixou residência nesta freguesia a exmª família do reverendo Manuel Alfredo Goulart, digno cura desta Igreja Paroquial”;

“Tem-se desenvolvido nesta freguesia, a epidemia do sarampo, principalmente na povoação do Monte. Até à data, felizmente, não têm aparecido vítimas” .

Um outro tipo de escrita assume um carácter manifestamente mais literário e até poético: “Era o anoitecer de um belo dia primaveril. O sol estava prestes a imergir no ocidente e a baça claridade crepuscular espargia-se pela terra em ondulações, que causava, tristeza, que despertavam saudades. Edénicas paragens exibiam uma perspectiva bel, encantadora! […] Bem junto a mim, gentis florinhas alcatifavam o solo […] Eram esplêndidos, encantadores os retoques, que esmaltavam o panorama” .

Já em Macau, funda em 1915 a revista Oriente, com uma periodicidade mensal, a qual dirige durante todo este ano. Aqui, o Cardeal discorre sobre assuntos da actualidade, como é o caso das crónicas que publica em 1915 sobre a I Grande Guerra, as eleições nacionais, a greve dos tipógrafos do Porto, entre outros assuntos.
Também é um colaborador do Boletim Eclesiástico da Diocese de Macau, onde publica diversas crónicas de viagem.
Desde os primeiros escritos, o Cardeal revela um apreço especial pela utilização de pseudónimos diversos. No jornal A Voz, assina com o nome de Albino, na revista Oriente como Mário ou como Sílvio. Ainda na década de 1950, escreve umas cartas de Roma sob o pseudónimo de Aliquis.

D, José, o nacionalista
Nesta vertente, o cardeal mostra-se sempre orgulhoso da nação e da história portuguesas. Numa conferência que dá a 20 de Fevereiro de 1922 na Sociedade de Geografia de Lisboa a propósito do Padroado Português do Oriente, ele afirma. “Eu revolto-me contra alguns escritores e historiadores nacionais do último quartel do século passado, que, numa ânsia destruidora, se empenham em amesquinhar os feitos portugueses dos séculos anteriores, desvirtuando […] essa epopeia brilhante, que tanto lustre dá à nação portuguesa” .
Julgo que é neste contexto que devemos compreender o apoio que ele dá ao poderes do Estado Novo, também eles com uma filosofia defensora da pátria e da história portuguesas. No discurso que fez no 10º aniversário da Revolução Nacional (1926-1936), publicado no Jornal A Voz de Macau, em 1936, ele afirma: “todos nós reconhecemos, no senhor Presidente da República e no senhor Presidente do Ministério, dois chefes categorizados, que vão encaminhando a Nação para destinos mais gloriosos […] Carmona é a figura prestigiosa, perante a qual todos se curvam respeitosos; Salazar é o homem de acção calma, que sabe o que quer e sabe para onde vai” . Na sua apologia da política salazarista, ele advoga a competência financeira do ministro português, a sua habilidade política e o seu investimento nas áreas da cultura, sociedade e educação nacionais. Diz D. José: Salazar “viu ruínas, sangue, incêndios e, sem sair do silêncio do seu gabinete, delineou, após longo estudo e meditação, as directrizes de um novo estado de coisas, que hábeis colaboradores vão pondo em execução, sob as vistas sempre atentas do chefe. Dado o feitio individualista da nossa raça, nem todos suportam essa vigilância assídua, mas ela é necessária, sob pena de tudo naufragar, e possivelmente numa catástrofe tremenda” .

D. José, o picoense
Em várias passagens dos seus escritos, D. José mostra-se sempre um nostálgico dos seus Açores e do seu Pico. As saudades são um tema recorrente. Regressa ao Pico pela primeira vez em 1913, 11 anos depois de ter saído da ilha; em 1931, onde passa por Ponta Delgada, cidade onde dá uma conferência sobre o Oriente no Liceu Antero de Quental. Mais tarde, em 1953, celebra as suas Bodas de Ouro de padre missionário mais uma vez na sua ilha natal. Mas estas deslocações pareciam-lhe sempre breves. Em 1967, numa carta que escreve de Roma ao seu amigo o Padre João Vieira Xavier Madruga, afirma: “Depois de 1893, só tenho ido ao Pico de passagem, mas essas pedras negras atraem-me sempre .
O seu amor à terra é comprovado pelo gosto que teve em fundar a casa de S. José, confiada às Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição. O objectivo foi, como ele próprio confessa no testamento que faz em 1970, “perpetuar a memória de meus Saudosos Pais […] e beneficiar o povo da Candelária, no meio do qual me orgulho de ter nascido

Em suma, estamos perante uma personalidade fascinante, que se destacou pelo contributo que deu ao mundo. No Oriente, as estatísticas comprovam que o seu esforço pastoral foi um sucesso. À frente de uma diocese com mais de 8 milhões de habitantes, dos quais apenas 40.000 eram católicos, o Cardeal D. José da Costa Nunes fez um trabalho notável em prol do catolicismo. Para além de gerir 8 colégios, 2 asilos, 1 seminário, 1 instituto de artes e ofícios, 1 escola de artes e ofícios, 40 escolas com mais de 2.000 alunos dos 2 sexos e conciliar as tarefas de 65 missionários, 58 religiosas, 124 professores e 25 catequistas, ele conseguiu duplicar o nº de praticantes católicos (de 29.628 para 50.916), aumentar o nº de baptismos, que passou de 2.903 para 9.147 (mais 6.244) e angariar mais recursos humanos, designadamente atraindo mais 75 religiosas, 23 missionários, 207 professores e 348 catequistas . A fundação de um colégio para rapazes chineses em 1931, a cargo dos Padres Salesianos, e de um colégio feminino (S. Rosa de Lima) sob a responsabilidade das Franciscanas Missionárias de Maria, a protecção que concedeu à Acção Católica, a fundação da Missão de Nª Srª de Fátima, a fundação do Convento de Carmelitas Contemplativas e de uma Casa de Regeneração, sob a égide das irmãs de Nª Srª dos Anjos, são apenas alguns dos exemplos do grandioso legado que D. José deixou no Oriente que tanto estimou.


Acima de tudo, é admirável como o seu espírito foi, ao mesmo tempo, conservador e modernista, apresentando um equilíbrio inteligente e sensível que só os grandes homens manifestam.

 

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