Foi nesta tónica que estes modestos
escribas iniciaram o caminho para São Luís do
Maranhão, num voo tecnicamente sem história, de
Toronto a São Paulo e, depois, desta que é a maior
metrópole da República Federativa do Brasil até
ao norte, em duas etapas, via Brasília, com mudança
de aviões rapidíssima, tipo sair de uma porta
e entrar noutra a ver o carrinho transportar as nossas malas.
Julgamos que a melhor maneira de contar esta
aventura será em tipo de diário de viagem, um
estilo que as nossas gentes de Toronto apreciam bastante mas
que a maioria dos donos dos jornais ainda não se aperceberam,
assim como de muitas coisas mais...
Toronto, ON, 4 de Maio de 2006 –
Saída do novíssimo Terminal 1, uma novidade para
um de nós que só a conhecíamos de umas
reportagens efectuadas há dois anos, durante os períodos
de construção e acabamento. Aerogare ampla, moderna,
pronta a movimentar muita gente mas que se encontrava quase
vazia. Comparada com as dos aeroportos principais da Europa
é como que comercialmente amorfa. A tal modéstia
típica dos canadianos – julgamos...
Uma ligeira, mas monetariamente inflacionada
refeição rápida antes de se meter o nariz
nas poucas lojas a funcionar, muito mais parcas que as do Terminal
3. Aí a gente reparou que já não devemos
ser tão ligeiros como gostaríamos de ser: um carrinho
daqueles de transportar gente com problemas de locomoção
aproximou-se de nós e a mocinha de sorriso aberto ofereceu-se
para nos levar ao “Duty Free”...ou foi só
porque havia pouca gente e ela queria justificar o emprego?
De qualquer forma, a oferta apagou o mal-estar
causada pela vigarice tolerada pela Greater Toronto Airport
Authority que pouco antes nos vitimou. É assim: a gente
pega um carrinho à entrada para carregar as malas. Paga
2 dólares, e recebe 25 centavos quando o devolve. Tudo
bem, é assim que as grandes obras se pagam. Só
que, para se poder efectuar esta operação é
necessário haver algum espaço para que o carrinho
accione a mola que liberta a moedinha e fique arrumadinho à
espera de conseguir outros 75 cêntimos. Mas não.
Propositadamente, os arrumadores enchem o carril de carros até
mais não, a mola não acciona, o carrinho fica
bem colocado, e a moeda... nicles!
Já lavrei o meu protesto – por
questão de princípio, claro – à GTAA,
em Inglês...
Embarque à hora, partida à hora,
refeição plástica ao atingir a altitude
e velocidade de cruzeiro. Serviço sofrível de
uma companhia de bandeira (nacional) como a Air Canada é.
Turbulências, só o aviso destas e o mandar apertar
os cintos (coisa que tanto os portugas como os brasucas
têm séculos de experiência, no mais lato
sentido da frase). A verdadeira turbulência é a
de acordar a gente para uns estremecimentos que de outro modo
nem sentiríamos ou nos acordariam. Tudo bem, mais vale
prevenir que remediar.
Guarulhos, São Paulo, SP, 5
de Maio de 2006 – Pequeno-almoço com sol
a nascer, nove horas e meia depois da descolagem de Toronto.
São Paulo fica num planalto, a 900 metros acima do nível
do mar, e nesta época do ano, tem temperaturas idênticas
às de Toronto. Colinas verdejantes na aproximação.
Selva pura. Aqui e ali uma mansão com piscina, símbolo
de uma classe cada vez mais rica a contrastar com a das favelas
que começam a vislumbrar-se. O aeroporto Internacional
de Guarulhos, cidade periférica como Malton/Missisauga
é o mais movimentado do Brasil. É dali que se
parte para o resto do País, mesmo que, como foi o nosso
caso, tivéssemos de voar mais cinco horas para o norte,
que já havíamos sobrevoado...
Fusca: sempre jovem no Brasil
Algumas idiossincrasias locais: o passageiro
que chega do estrangeiro pode ir ao “Duty Free Shop”,
onde tudo se paga em dólares americanos. Só que
depois é melhor declarar o que traz. Um jovem funcionário
alfandegário, agarrado ao telemóvel e com um sorriso
deleitado com a pessoa do outro lado da comunicação,
mandava os passageiros para a inspecção alfandegária
ou para a saída, de uma forma totalmente arbitrária,
sem perguntas ou mesmo um olhar mais demorado. E continuava
deleitado a sorrir abstracta e descontraidamente para o/a interlocutor/a...
A inspecção é muito mais
moderna que no Canadá. As malas passam ao raio-X numa
maquineta enorme, de grande ecrã, para distrair as pessoas
que aguardam a sua vez de distraírem os que se seguem
naquela morosa vistoria.
Tudo bem, o nosso próximo voo era daí
a dois dias e ninguém nos esperava. Mas foi chato porque
um casal à nossa frente trazia 4 sacos com produtos de
cabeleireiro, de cores garridas: champôs, amaciadores,
lacas, todas alinhadas como um exército de embelezar
no balcão da alfândega. A moça do casal
tinha um computador portátil e a sentença da funcionária
foi fulminante: pagar 800 dólares (US) para entrar com
ele no Brasil. Ao fim de muita espera, lá dissemos que
gostaríamos de saber o que quereriam revistar da gente.
Nada, apenas um sorriso e ida para a rua. De soslaio, olhámos
para o primeiro (mal) empregado alfandegário. Lá
continuava ele, agarradinho ao telemóvel, de sorriso
pepsodente para um/a parceiro/a do outro lado do éter...
assinalando sem ver os que podiam sair ou tinham de ir à
revista! Os bons “profissionais” são assim,
em qualquer parte do Mundo.
Locomotiva de café - Jardim de Guarulhos
O resto da manhã deu para passear em
Guarulhos, cidadezinha periférica de Sampa (assim lhe
chamam carinhosamente os locais). É local pobre, com
alguns bons hotéis e supermercados, um jardim com uma
locomotiva que me fez saltar o coração. Um bom
primeiro almoço no hotel de uma cidade cuja peculiaridade
é a de uma paragem de autocarros que, de manhã
à noite, tem filas permanentes de mais de 500 utentes
à espera das carreiras para a gigantesca metrópole.
De tarde, o nosso primeiro grande passeio:
táxi até ao bairro português da Bexiga.
Entre um casario baixo e incaracterísticos, algumas mansões
tipicamente lusas, umas recuperadas e lindas, outras lindas
e em ruínas. A arquitectura é variada e por isso
as fotos que acompanham estes textos e falam por si.
Uma rua do Bairro da Bexiga - São
Paulo
Sempre a subir, acabámos na grande artéria
de São Paulo, a Avenida Paulista, onde todos os arranha-céus
dispõem de heliportos e o zumbido das libelinhas mecânicas
se sobrepõe à de um tráfico automóvel
alucinante. Um chopinho (cerveja a copo) que foi o primeiro.
Depois, calcorrear aquela via das grandes multinacionais e bancos
de todo o mundo, com preponderância para o Santander (espanhol)
que em grandes cartazes com os craques do futebol brasileiro,
se vangloria de ter sido recentemente considerado como o melhor
banco da Europa. Eles lá sabem...
....
Contrastes - Portão artístico em ferro e limpeza do terreno da feira
Só um banco, porém, o Citibank,
aceitava nas suas terminais electrónicas, os cartões
de débito do Canadá. Aqui fica o aviso à
navegação: quer for ao Brasil deve levar Reais
suficientes consigo para as primeiras despesas, porque depois
é difícil trocar os dólares canadianos.
A reportagem fotografou e andou milhas, muito
para lá do anoitecer rápido e brusco. Para uma
cidade como São Paulo, a iluminação pública
está longe de ser feérica como aquela a que estamos
habitados no hemisfério norte das Américas. Mas
as nossas pernas recusavam-se a parar: andava-se, observa-se,
comentava-se, recolhiam-se impressões jornalísticas
e de outras apreciações mais corriqueiras. O Zé
Ferreira é muito menos exuberante que eu. Mas tem uma
capacidade de fixar coordenadas que poupam muito tempo na vez
seguinte. Já tarde, com algumas inesperadas compras,
regresso ao Hotel de Guarulhos para uma noite de muito dormir
e uma sensação de ter visto este mundo e o outro.
E era só o primeiro dia!
Artéria de luxo: Avenida Paulista
ao entardecer
Guarulhos, São Paulo, SP, 6
de Maio de 2006 – Sábado é um dia
que adoro. Está tudo aberto e a gente tem o dia por conta
(quando não trabalha). O Zé tinha tirado as coordenadas
de como chegar ao centro histórico paulista. O táxi
levou-nos até à intersecção da Avenida
Rio Branco com a Duque de Caxias, que está triunfante,
de espada na mão, numa estátua equestre que o
nosso motorista tão bem descreveu como “montado
num cavalão”. O Zé procurava sapatarias,
eu uma loja onde pudesse comprar um conversor de corrente para
viagem, a única coisa que me esqueci em Toronto. Por
sorte, estávamos, inadvertidamente, na zona dos electrónicos,
com milhares de pessoas nas ruas e nas miríades de lojas
da especialidade. Curiosamente, lembrava o conceito medievo
das ruas de “artes e ofícios” onde só
se vai para comprar precisamente um determinado tipo de produto.
Só que os conversores no Brasil são vendidos em
lojas de ferragens e não de electrónicos. A busca
foi o melhor guia turístico que poderíamos almejar.
O que a gente viu e observou!!! Ambos os repórteres encontraram
o que procuravam. Depois foi andar até os pés
doerem e as bexigas nos lembrarem das nossas precisões.
Aí, as polícias omnipresentes (é ano de
eleições e os candidatos camarários, estatais
e federais querem mostrar obra), desde as militares às
de outras denominações, armados até aos
dentes mas correctíssimos para connosco, nos informaram
que casas de banho só num centro comercial, que as públicas
se encontravam fechadas.
O Duque de Caxias no seu "Cavalão"!
Os centros comerciais têm seguranças
e hospedeiras em cada canto. Uma delas, nem pestanejou quando
a pergunta foi formulada e levou-nos directamente ao “palácio
das necessidades” onde mediante meio real a gente se aliviou.
O almoço foi numa churrascaria que vende a comida a peso.
É assim: a gente entra e recebe à porta um cartão
electrónico. Vai ao buffet, coloca no prato, chega à
balança, a funcionária pesa tudo, regista no cartão.
A gente come, bebe, apresenta o cartão à saída,
na caixa, paga e sai, entregando à mesma primeira empregada
o cartão já descarregado, sinal de pagamento.
Comentário do Zé Ferreira: - Porque é que
não pesam a gente à entrada e depois à
saída? Assim já sabiam quanta comida a peso a
gente tinha ingerido, não é? – Concordei.
Mas depois pensei um pouco e descobri que só tinha um
problema: é que neste caso a gente ficaria vedado de
usar a casa de banho antes de sair, não?
Fomos rindo rua abaixo, com gente nas compras
até mais não. Em frente ao Teatro Municipal, descobrimos
que as estátuas de dramaturgos de origem portuguesa têm
as placas indicativas arrancadas das peanhas. Uns dizem que
por vingança contra o antigo colonizador, outros que
é para vender a peso o metal de que são feitas.
A verdade mais dura é que um jardim tão belo como
o que se encontra frente ao teatro é um mictório
público onde a fonte luminosa está seca e as escadarias
laterais são clepsidras de urina...
Ao fotografarmos, numa técnica genuinamente
simples de protecção mútua, a única
aproximação duvidosa da toda a viagem: Daquela
gente sentada no chão, dois jovens aproximaram-se para
oferecer os seus “serviços”. O tom de voz
do Zé foi peremptório e imperioso: - Somos jornalistas,
estamos a trabalhar e não precisamos de nada! –
Os moços insistiram. Foi aí que no mesmo tom a
coisa se resolveu de vez: - Aqui não há nada para
ninguém, perceberam? – Eles perceberam mesmo.
Caminhada valente para esmoer a lauta refeição.
Um cheiro a café faz-nos entrar num botequim acolhedor.
Pedimos dois cafés. O patrão detecta o nosso falar
e diz: - Os senhores conhecem Setúbal? – Respondi
que há meses fui lá almoçar para andar
no comboio da Ponte 25 de Abril. O sorriso abriu-se. O senhor
era da rainha do Sado de onde saiu há 35 anos para não
mais regressar. Contei-lhe da saga do Vitória que iria
no domingo seguinte à final da Taça com o Porto.
Bebeu-nos as palavras. E ficou mais feliz ainda ao saber que
o 8.º Exército já tinha levado a Taça
o ano passado para a cidade de Bocage e Luísa Todi. Afinal,
o meu falecido e saudoso compadre Renato tinha montes de razão
quando dizia no seu inconfundível linguarejar alentejano:
- O mundo é uma data de Bejas juntas!
Camões enclausurado até
em estátua...
E por falar em linguarejar, assunto que frequentemente
o leitor irá encontrar nesta recolha, é importante
que se saiba que os brasileiros identificam o português
que nós falamos mas nem sempre o entendem direito. O
que é normal. Aparentemente a gente fala muito depressa
e em São Paulo há que martelar as vogais para
a gente se fazer entender. Dois exemplos vividos por nós:
- Depois de visitarmos a estátua de Camões, rodeada
de uma forte vedação a impedir a aproximação
do monumento colocado frente à Biblioteca Municipal da
Cidade, sabendo que estávamos próximos à
Rua da Liberdade, onde fica a Casa de Portugal, o Zé
inquiriu a um transeunte se estávamos perto. O homem
soletrou liberdade e depois num rasgo de espanto: - Ah,
Libérdádji!!! E mostrou o caminho, que para
nossa sina, fica perto da Rua Augusta, uma via que sai de uma
zona pobre e termina na mais rica de Sampa, o Bairro dos Jardins,
uma zona que mete Forest Hill num chinelo e que adiante voltará
a ser mencionada.
O segundo exemplo foi comigo no voo do dia
seguinte para Brasília. A aeromoça (é assim
que se designam as hospedeiras de bordo por estes ares do sul)
trouxe café e eu solicitei adoçante em vez de
açúcar. A jovem embatucou, depois arregalou os
olhos e disparou: - Não será ádoçántji
que deseja? – Era isso mesmo. As minhas diabetes aprenderam
então que há mais de uma maneira para se pronunciar
a alternativa ao açúcarzinho que, por muito abuso,
agora lhe é sonegado.
Casa de Portugal em São Paulo
Isto pode parecer ridículo mas a gente
andava desde a véspera à procura dessas lembrancinhas
magnéticas que, nas portas dos frigoríficos indicam
os sítios por onde temos laureado a pevide. Toda gente
indicava onde havia, mas quando lá chegávamos,
não tinham. Eis que na praceta antes da Casa de Portugal,
centro da maior concentração de japoneses fora
do país do Sol Nascente, os encontrámos numa alegre
feira onde surpreende ver orientais apenas a falar português.
É uma verdadeira “Japan Town” por onde passei
num fim de tarde de 1972, no mesmo propósito, mas entre
ruas abertas e encerradas à circulação
devido à construção do “metro”.
E é ali que está lindíssima a nossa Casa.
Só que era sábado, não passámos
do átrio cheio de placas a atestar a passagem de tudo
o que é político português ou militar dos
tempos da ditadura brasileira. E foi pena não podermos
visitar mais. Mas a peregrinação obrigatória
cumpriu-se com foto e tudo.
A bela Helena, nossa guia por excelência!
Anoitecia e era altura do telefonema de cortesia
para a Helena Martins, funcionária do atribulado Consulado
de Portugal em São Paulo, dirigente e representante para
o Brasil do STCDE (Sindicato dos Trabalhadores Consulares e
das Missões Diplomáticas). Ela morava perto e
uma curta viagem de “metro” nos levou ao encontro
dela num centro comercial de gabarito. Daí, a nossa generosa
e simpatiquíssima transmontana e paulista proporcionou-nos
uma terceira visita de cidade, desta feita ao famoso Bairro
dos Jardins, o mais elegante da cidade, onde se encontra em
grande luxo o consulado português, em condomínio
fechado, pejado de seguranças, tal como a residência
da Missão, um assunto que deixaremos para outra oportunidade
mas que tem vindo a ser denunciado, a par do Consulado de Londres,
em vários locais da internet e órgãos da
comunicação social lusa dos dois lados do Atlântico.
Só que serviço é serviço e conhaque
é conhaque e a hora era deste último. Chatices
de trabalho são para ficar enterradas ao fim-de-semana.
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