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ALCÂNTARA DO MARANHÃO

Debruçado sobre esta muralha encantadora
Vigiada pela claridade do lampião antigo;
Vejo o bater das águas na pedra protectora
Controlando minha ansiedade, dando-me abrigo.
(Euclides Sousa, poeta Maranhense)

Citemos o que Barnabás Bosshart descreve no guia turístico para esta maravilhosa testemunha de um passado histórico que é Alcântara, suas ruínas, suas gentes e suas espectaculares recuperações arquitectónicas:

“Localizada a Noroeste de São Luís, 22 km de travessia pela baía de São Marcos, a Vila de Santo António de Alcântara foi fundada pelos portugueses em 1648, pouco depois dos franceses terem estabelecido sua capital na Ilha de São Luís, no ano de 1612.

Alcântara, como se tornou conhecida, antes aldeia Tapuitapera, a antiga morada dos índios Tapuias ou cabelos compridos. Diferentemente de São Luís, Alcântara encontra-se no lado continental da Baía de São Marcos, em localização privilegiada no Atlântico Sul do Nordeste brasileiro, a 44º 25’ a oeste de Greenwich e 2º 24,5’ ao sul do Equador. Seu clima é tropical, húmido e a temperatura média gira em torno dos 30º C o ano inteiro, com estações bem definidas: de Janeiro a Junho tem-se a época das chuvas e de Julho a Dezembro o período é de seca, com muito sol e ventos fortes.

A população de Alcântara é predominantemente negra, preservando diversos aspectos da sua cultura africana. Os primeiros negros foram trazidos em grandes navios que faziam tráfico de escravos a partir do século XVI. Eles vinham das antigas colónias portuguesas da África Ocidental, como Cacheu, na Guiné-Bissau, da Costa da Mina e Angola, na parte meridional do continente. Já em Alcântara, os escravos serviam de mão-de-obra gratuita à aristocracia portuguesa, formada por almirantes, governadores, barões, etc. Essa aristocracia estabeleceu-se na região ao lado de ordens religiosas como as carmelitas, os jesuítas, os franciscanos e os mercedários (de mercês).

A exploração dos índios nativos de Alcântara e africanos, de origens sudanesas e bantas, durou mais de três séculos e foi suficiente para marcar todas as gerações futuras. Poucos conseguem esquecer a opressão a que seus antepassados foram submetidos. Mesmo sofrida, essa gente nutre um profundo e sincero afecto pela sua terra. Isso a torna ainda mais especial.

Alcântara viveu o apogeu do período colonial do Brasil e já foi considerada a capital da aristocracia rural do Maranhão. Hoje, a cidade está decadente e parcialmente em ruínas. Mas sobreviveu a muitos episódios marcantes da história do Brasil.

Em 1948, Alcântara foi tombada pelo Património Histórico como Cidade Monumento. No começo da década de 80, o Ministério da Aeronáutica iniciou a instalação da Base Espacial para lançamento de foguetes e satélites. Hoje, plenamente instalada, fica próxima à cidade histórica.”

Mil e uma paragens, ladeira acima, já fustigados pelo calor e pela humidade, fotografando e comparando, chegámos à rua principal onde na pousada restaurada se encontrava a “caravana” açoriana desde a véspera. Foi um reencontro de velhos conhecidos e amigos liderados pelos incansáveis funcionários da Secretaria Regional das Comunidades, Miguel Noronha, Nélia Andrade e Paulo Teves. Com eles a delegação do Uruguai, e os músicos Victor Castro, Paulo Cunha, Manuel Costa e o espantoso grupo Quatro Oitavas mais a directora do Conservatório de Ponta Delgada, Ana Paula Andrade e o professor de violino Grigory Spector.


Desembarque precário no Cais de Alcântara

Alguns dedos de conversa, os inevitáveis cafezinhos; e eis que nos separámos até à noite. Eles para regressarem a São Luís e os escribas-recolectores de imagens para visitar a Casa do Divino, uma espécie de Museu e Império do Espírito Santo antes de longos passeios a pé pela localidade. Foi importante a visita ao Império porque, a uma quinzena da grande festa, anteciparam a exposição de altares e tronos para que os congressistas pudessem levar uma ideia das diferenças no culto, e da própria arte sacra e profana que o rodeia.

Na rua principal, havia mercado para pobres: na falta de armazéns é ali que tudo se vende: utensílios de cozinha, brinquedos coloridos, panos e roupas, coisas para as necessidades básicas de quem tem de viver com muito pouco. O outro ponto de azáfama foi a longa fila à porta da casa de lotarias. No Canadá, país rico, costumo dizer que a lotaria é o imposto dos tolos. Ali, em Alcântara, face a uma outra realidade, não tive a coragem de o dizer a quem quer que seja. Não se brinca com a esperança de quem tem muito menos do que o nada que o escriba possui.

As ruínas – muitas delas irrecuperáveis – foram a mira das nossas objectivas. Situada num morro bem acima do mar, as vistas são encantadoras. Mas em termos de visita interior, para além da estalagem e do Império já referido, foi a visita à Casa Histórica de Alcântara, uma das mais interessantes e recuperadas da cidade. Tem sobrado colonial com dois andares e uma água-furtada a que chamam de mirante, pátio interior, poço protegido e um acervo rico de objectos portugueses e ingleses dos séculos XVII e XVIII, onde se destacam três máquinas de costura Singer, uma delas igualzinha à que lhe foi legada pela sua Avó Ilda, e onde ele expiava as diabruras de menino, amarrado a ela com fio de alinhavar, sem se atrever a parti-lo! Não sei se foi da aragem do mar ou da humidade do dia; mas por um breve momento senti os olhos bem molhados, ora então?!



Alcântara - Praça das Mercês

Um destaque vai ainda para os retratos, pinturas. Móveis, vidros, armas, porcelanas e copos da época. Não mencionado no roteiro mas interinamente registados, encontrei duas espécies de azulejos raríssimos, mesmo em Portugal de onde são oriundos. Os primeiros formam o rodapé externo da casa e são em relevo, alguns deles já bastante estragados. A acompanhar os degraus da escada, um friso de mosaicos típicos da Fábrica Santana, de Lisboa, a única, ao tempo, a utilizar uma célebre combinação de cor roxa, negra e amarela, a contrastar com o azul esbatido unido desta cerâmica. Fiquei feliz por poder explicar isso aos guias-guardiões da casa, que só sabiam ser mosaicos portugueses do início do século XX.


Alcântara - Pátio interior com poço protegido

Na intersecção em “T” da Rua Grande com a Rua Direita, um pouco a leste da loja do cangalheiro, fica o Restaurante Palácio dos Nobres, bem ajardinado e nas traseiras da Igreja do Carmo. Foi aí que a reportagem almoçou, sem pressas, constatando ser o local favorito onde os guias levam os seus turistas a comer (bem).

O resto da tarde, foi passada a observar a cidade, de outras perspectivas, acompanhados de um cachorro “vira-latas” e sarnoso, que se afeiçoou ao Zé, e da figura dele se serviu para atravessar territórios demarcados por outros cães, ignorando o ladrar irado destes, seguro da protecção que tão bem soube aproveitar para caminhar em ruas por onde certamente não se atreveria a passar sozinho...

......
Alcântara - Azulejos do séc. XX (Fábrica Santana, Lisboa) e Janela

No porto, entre umas águas de coco, algumas cenas inenarráveis mas hilariantes, com um alcantarense de fala das novelas, bem ‘acachaçado’ para o dia e um carregar de carroça, puxada por uma pequena mula, a que entendi chamar “a donkey-powered Volkswagen”.


Alcântara - Carroças de carga no porto

Porque uma foto vale realmente mais que mil palavras, convida-se o leitor/a a observar o testemunho fotograficamente recolhido.

Às 16h00, regressávamos deslumbrados a São Luís, na lancha “Diamantina”, a uma hora em que a estação fluvial podia cumprir a sua missão, mesmo sob as nuvens ameaçadoras que em breve nos explicavam a razão porque ali pairavam...

A abertura solene do I Encontro Luso-Maranhense

Às 19h00, no Palácio do Governador do Estado do Maranhão, sob chuva torrencial, iniciava-se a sessão solene da abertura do I Encontro Luso Maranhense Sobre a Memória Açoriana no Estado. Coquetel (é como lá se chama ao nosso cocktail) e música pelo excelente Quarteto Maranhense de Música – Paulo Santos (flauta), Manuel Mota (violino), Káthia Salomão (violoncelo) e Joaquim Santos (violão). Nota digna de registo foi a inclusão daquela melodia incomparável, verdadeiro hino não-oficial da região autónoma açoriana que é o “Ilhas de Bruma”, num arranjo clássico a que a audiência se rendeu extasiada, não só pela interpretação como pelo significado.


A Mesa de Honra

Pouco depois, no salão nobre do Palácio, deu-se início à sessão inaugural do I Encontro Luso-Maranhense sendo a mesa composta pela Dra. Gisélia Castro, presidente do Instituto de Comunicação, Educação e Cultura Chamamaré; Joseth Coutinho, representante da Comunidade Portuguesa em São Luís; Dr. Carlos Corvelo, Secretário Regional para o Planeamento, Governo Regional dos Açores; Professora Doutora Ester Marques, Universidade Federal do Maranhão e o Dr. Francisco Padilha, em representação do Governador do Estado do Maranhão, entre outras individualidades locais.


Dra. Gisélia Castro, presidente do Instituto Chamamaré

Cerimónia simples, discursos breves e alusivos à importância do Encontro. A Dra. Gisélia, contudo, proveu, nas suas palavras, a “pedra de toque” para a cerimónia e o propósito da iniciativa conjunta das três identidades organizadoras. E disse:

“Eu me resolvo que esta é a melhor terra do mundo, donde os naturais são muito fortes e vivem muitos anos, e consta-nos que, do que correram os portugueses, o melhor é o Brasil, e o Maranhão é o Brasil melhor, e mais perto de Portugal que todos os portos daquele Estado, em derrota muito fácil à navegação, donde se há-de ir em vinte dias ordinariamente (Simão Estácio da Silveira, açoriano, primeiro presidente da Câmara de São Luís, século XVII).”
E o mesmo sentimento de encantamento, semelhante ao de Simão Estácio da Silveira tomou conta da equipa do Instituto de Comunicação, Educação e Cultura Chamamaré, ao tomar a iniciativa para realizar o I Encontro Luso-Maranhense sobre a Memória Açoriana no Estado: Evocações do passado – dos Açores ao Maranhão, em parceria com a Universidade Federal do Maranhão e o Governo Regional dos Açores.


Os convidados no Palácio dos Leões (Palácio do Governador)

A intenção deste encontro é a de fomentar estudos e discussões comuns sobre a presença dos imigrantes açorianos neste Estado, no seu processo de povoamento entre os séculos XVII e XVIII, mas, ao mesmo tempo, verificar como o Maranhão pode contribuir para melhorar o desenvolvimento regional das nove ilhas que compõem o arquipélago banhado pelo Oceano Atlântico.
A intenção primordial deste encontro é, portanto, permitir que representantes das comunidades maranhense e açoriana possam, pela primeira vez, recompor o fio de Ariadne que liga as duas culturas desde o século XVII, que por força do processo civilizatório permaneceu invisível, perdido nas brumas do tempo mítico, nas lendas, nas canções populares, nos contos de além-mar, nos decretos reais e nas histórias trágicas dos muitos que perderam a vida para refazer no Maranhão a saga dos conquistadores, entre o velho e o novo mundo.
Este evento aparece também como o primeiro resultado da participação do Instituto Chamamaré no 12.º Curso ‘Açores – à Descoberta das Raízes’, realizado entre 7 e 15 de Maio de 2005, nas ilhas Terceira e Graciosa. Esta primeira participação funcionou, portanto, como um ponto de partida e de trocas de conhecimentos entre as duas comunidades, que agora se vai consolidar com a realização do evento “A redescoberta do passado: dos Açores ao Maranhão”.
A partir de amanhã até quinta-feira, no Convento das Mercês, estarão na mesa de debates temas como economia, política, questões sociais, o património material e imaterial, e a cultura dos Açores e do Maranhão.
Peço desculpas antecipadamente por eventuais falhas. Mas saibam todos que o Chamamaré não mediu esforços para promover este encontro, que é histórico. E, portanto, temos a certeza que este evento será inesquecível e engrandecedor para o Maranhão e para os Açores. Muito obrigada!


D. Joseth Coutinho, representante da Comunidade Lusa do Maranhão

A oradora seguinte foi a representante da comunidade portuguesa de São Luís, Sra. D. Joseth Coutinho, a historiar com bastante detalhe o estabelecimento das famílias açorianas no Maranhão.


Dr. Carlos Corvelo, representante do Governo da Região Autónoma dos Açores.

É então ao Dr. Carlos Corvelo que cabe representar o outro parceiro principal do Encontro, o Governo da Região Autónoma dos Açores. O que fez com a fluência oratória a que de há muito nos habituou. Sem deixar de lado o pragmatismo de um relacionamento futuro mais aprofundado, abrindo as portas da periferia da União Europeia ao escoamento dos recursos e produtos do Maranhão, pois que os Açores estão ideal e geograficamente talhados para isso. E disse:

Minhas Senhoras e meus Senhores!
Cumpre-me em nome do Governo Regional dos Açores agradecer o convite que nos foi endereçado para estarmos presentes neste I Encontro Luso-Maranhense. É um encontro que, na sequência de outros, temos apoiado e participado, um encontro que muito nos honra e muito nos apraz. É um encontro que só foi possível mediante uma parceria muito grada da comunidade Luso-maranhense, Luso-Brasileira no Maranhão, do estado Federal, da Perfeitura, da Universidade, entidades às quais o Governo Regional se associou, através da Direcção Regional das Comunidades, e com o empenhamento pessoal da presidência do governo.
Temos um grande orgulho do povo a que pertencemos, orgulho esse que se manifesta com grande evidência aqui no Brasil. A saga histórica do povo açoriano está profundamente ligada ao povoamento do Brasil: nos séculos XVII e XVIII no Maranhão e no Pará; nos séculos XVIII e XIX em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul; nos séculos XIX e XX no Rio de Janeiro e em São Paulo.
São marcos históricos através dos quais o povo açoriano atravessou. E atravessou por motivações diferentes: no início para conter e manter a bandeira portuguesa - ou a colonização portuguesa no nordeste do Brasil. No segundo caso para manter as fronteiras no sul do Brasil – eram franceses de uma vez, holandeses de outra. Finalmente pela imigração que foi canalizada nos séculos XVIII e XIX e que, de certa forma, veio compensar algumas insuficiências da nossa Região.
Por tudo isso estamos gratos aos brasileiros mas temos a ideia que a nossa permanência no Brasil é razão para o facto de estarmos aqui. È a cultura, é a solidariedade, o sentimento de identidade que nos faz estar aqui. Sentimentos esquecidos durante muitos anos, que, felizmente, nos últimos tempos (9, 10 anos) tem vindo a ser reanimado, tem vindo a ser acarinhado pelo Governo Regional, e continuamos a querer acarinhar.
Pensamos que este é mesmo o primeiro encontro no Maranhão a que outros se seguirão, continuaremos, dentro das nossas possibilidades, a apoiar este tipo de realizações, para que, por um lado, possamos investigar e melhor conhecer qual o nosso papel como açorianos no Brasil. Por outro lado, começar a consolidar os laços culturais que são evidentes em muitas terras deste imenso e autosustentado país. Por tudo isso temos imenso gosto em estar aqui presentes e só desejamos que este primeiro encontro, beneficie da troca de sabedorias e conhecimentos que, nos campos profissionais, sirvam para consolidar esta amizade que, penso, muito dificilmente ou já nada poderá destruir. Muito obrigado!


Prof. Dra. Ester Marques, da Universidade Federal do Maranhão

Foi a vez da Prof. Dra. Ester Marques, assistente na Universidade Federal do Maranhão e membro do Instituto Chamamaré, especialista em Comunicação e Jornalismo, dar a pedra de toque quanto à raison d’être do I Encontro, salientando:

No momento em que o processo de globalização junta sociedades e culturas de todos os continentes, através de novas tecnologias, da indústria cultural e dos meios de comunicação de massa, mais e mais povos redescobrem seus laços de parentesco e afinidades culturais, esquecidos pelo tempo secular e pela memória ancestral. Mais do que mundializar comportamentos, gostos, modas e culturas, o que a globalização tem proporcionado ao mundo contemporâneo é a capacidade ilimitada de povos próximos redescobrirem suas origens comuns não só para actualizá-las, mas para reforça-las como parte de um processo identitário permanente, em que a língua é o fio condutor que resguarda a simbologia da pátria única.
Desde que o Brasil comemorou 500 anos de história, que os laços deste país com Portugal se tornaram mais estreitos e contínuos, o que tem permitido a pesquisadores e estudiosos de ambos os lados ampliarem suas trocas de conhecimentos políticos, sociais, económicos e culturais por meio de encontros, pesquisas, viagens, realizações de cursos ou publicações comuns, cujo objectivo principal tem sido o de reescrever a história luso-brasileira com os olhos do futuro, sem os constrangimentos tradicionalistas do passado.
Estas trocas, por sua vez, têm suscitado o interesse dos dois países de vasculharem profundamente vestígios de identidade nas culturas locais do Brasil e de Portugal, possíveis de manter em aberto a perspectiva de uma memória comum que possa continuar movimentando o motor da história de uma forma mais compartilhada, não somente como uma maneira de se contrapor a todas as tentativas de estandardização/homogeneização cultural, mas como um processo específico de singularidade e diferenciação.
Para além da importância histórica de que são revestidas, essas tentativas têm o carácter de repor para a sociedade o papel cultural fundamental da colonização portuguesa na organização social e política do Brasil que, se comparado aos demais processos civilizatórios da América do Sul, acabou por se revelar menos violento e mais desenvolvedor do que a memória oficial regista. A intenção não é reelaborar a história dos grandes feitos heróicos e dos discursos oficiais, mas dinamizar a memória quotidiana das pessoas comuns que trabalharam, sofreram, amaram e reconstruíram as suas raízes no Brasil, morreram e deixaram vestígios das suas vidas nas nossas vidas. Obrigada!

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