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Conquanto fosse noite, as ruas das boutiques (sobretudo a da Augusta “rica”) fariam morrer de inveja a nossa Bloor West ou a apregoada Yorkville de Toronto. Variedade, luxo, bom gosto, preços elevadíssimos, num contraste gritante com as favelas e outros bairros vizinhos, onde há anos se assiste à erosão e desaparecimento de uma classe média cada vez mais ténue.

Terminada a visita, jantar com a nossa anfitriã numa churrascaria belíssima, de serviço impecável, como nem em Toronto se encontra nos melhores hotéis. No final de um serão agradabilíssimo, a Helena não nos permitiu apanhar um táxi de regresso a Guarulhos e insistiu em conduzir-nos lá, onde chegámos após algumas saídas erradas da auto-estrada mas que, como sempre, constituíram uma benesse acrescentada aos olhos atentos de quem ama esta profissão. Quando um dia a bela Helena vier a Toronto, o Zé e eu tudo faremos para lhe retribuir o maravilhoso passeio que nos proporcionou, na que era (e na altura não o sabíamos) a nossa última passagem por São Paulo nesta viagem.

Guarulhos, SP, Brasília, DF, São Luís, MA, 7 de Maio de 2006 – Outro aviso à navegação para quem, não sendo brasileiro, vá visitar o Brasil para além dos pontos de destino internacional: a Air Canada, por exemplo, não especifica o peso das bagagens de cada passageiro mas sabemos que consiste de duas malas a despachar com um máximo de 50 kg. Só que se seguirmos viagem dentro do Brasil, esses 50 kg passam a ser 23 kg por pessoa! A nossa explicação não foi aceite, não foi entendida, e o excesso de bagagem vigorou e foi pago. Ora como toda a gente viaja agora com malas designadas para caber nas bagageiras por cima dos assentos, descobrimos que o saco com o material fotográfico iria fazer parte da bagagem de mão daí por diante. Resultou, nunca mais ouvimos falar em excesso a cobrar.


São Luís - Praias Atlânticas a leste do centro histórico

Como em quase todo o mundo ocidental, as companhias aéreas enfrentam crises desde o dia em que a parelha (a palavra foi judiciosamente escolhida, acreditem) Reagan-Tatcher decidiu desregulamentar a IATA (International Air Transport Association), sediada em Montreal, Canada. Esta importante associação internacional, estabelecia regras de segurança, manutenção, tarifas, etc.) universalmente acatadas à risca porque as inspecções eram frequentes e reais, algo que vivi de perto nos anos em que também fui agente de viagens. Assim, tal como no Canadá, assiste-se a um corrupio de falências, preços ora altos ora baixos, deficiência de manutenção a causar acidentes, ordenados de miséria a tripulações menos preparadas e outras maleitas laborais que bastam. O Brasil não é excepção e a Varig está quase a ser absorvida pela TAP – Air Portugal, a Vasp quase não existe, a Cruzeiro do Sul e outras deram lugar a duas empresas que agora dominam os céus do Brasil: a TAM e a GOL.

Conforme viemos a constatar, praticam preços baixíssimos fora do Brasil e altíssimos dentro do país, a seu bel-prazer como nos disseram abertamente. Se uma pessoa necessita de mudar um voo no Brasil, os custos são baseados nas tarifas locais e uma mudança significa quase sempre um preço mais elevado do que a tarifa completa adquirida fora do Brasil. Prova: O nosso itinerário, preparado separadamente da ligação Toronto/Sampa/Toronto, rezava: Sampa/Brasília/São Luís/Brasília/Sampa. Quando decidimos acrescentar Florianápolis (Santa Catarina), um voo de 45 minutos a sul da São Paulo, a TAM pediu-nos 1.500 US$ para os dois. Recusei, fui à internet e reservei na GOL por 500 US$ para os dois, ida e volta!

Segundo me informaram na própria companhia, “os preços praticados dependem da lotação dos voos, da procura do dia”, etc. Mesmo assim, resolvendo o problema da melhor maneira, um simples São Luís/Brasília/Sampa, acabou por se transformar num São Luís/Fortaleza (mudança de avião) /Natal/Sampa/Florianápolis/Sampa, o equivalente a um dia inteiro de viagem, das 10h00 às 23h30, com 6 horas de espera total entre voos. Valeu o nosso espírito de aventura que nos levou a ver coisas que o comum dos mortais normalmente não repara.

Em 1972, Brasília era realmente só a cidade-capital, relutantemente aceite pelas representações diplomáticas, obrigadas a ir para um “cu de judas” sem vida social, uma cidade de funcionalismo público criada pelo arrojo arquitectónico do grande mestre que é Óscar Niemayer, a partir da vontade do então presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira. Agora, vista do ar, passa longe do centro e só se vêm bairros de casas alinhadas em arruamentos de terra batida vermelha, tanto cresceu. Porque o nosso voo saiu atrasado por causa de um grupo de fundamentalistas cristãos, construtores de casas para o terceiro mundo, CWE (Construction for World Evangelism) dos Estados Unidos. Chegaram com o avião pronto a descolar, não despacharam a bagagem e ainda queriam remover a que estava já arrumada. Aí avisei muito claramente os cavalheiros que na minha bagagem electrónica não se tocava. Em boa hora o fiz pois foi o alerta para o pessoal de bordo para lhes enviar a bagagem para o porão pois “achavam” que podia ser colocada no corredor do avião, imagine-se!

Na capital federal, foi sair da porta 7 para a 9, sem pôr os pés no interior do terminal, pois que o voo para São Luís (o último do dia) nos aguardava para descolagem imediata.


São Luís - O célebre porto fluvial em hora de ter água

A sensação da chegada ao Maranhão foi idêntica à que senti em 1972 ao desembarcar no Recife, ao romper da alva: um bafo quente e húmido que cola de imediato a roupa ao corpo. Na aerogare conheço uma velha amiga do Zé, a Professora Ester Marques, da Universidade Federal do Maranhão, acabada de fazer doutoramento em Lisboa, membro do grupo Chamamaré, organizadora deste primeiro encontro. Aguardava-nos e foi o nosso esteio, amparo e guia no que haveria de se transformar numa experiência inolvidável nas terras onde o São Macaio deu à costa...

Feita a instalação no hotel, convite imediato para uma visita da cidade. As comitivas açorianas e uruguaia já tinham antecipado a sua visita à cidade histórica de Alcântara, na baía de São Marcos, frente a São Luís onde pernoitariam. Por nosso turno, sendo Domingo, aproveitámos para visitar a zona antiga da única capital estadual do Brasil que não foi fundada por Portugueses mas sim por Franceses.


São Luís - Centro Histórico - Património a recuperar

SÃO LUÍS DO MARANHÃO

Querida São Luís,
Nem longe alvitro
Um viver longe de ti, do teu amor.
Teu aconchego de seio materno
É o que me dá
À existência vida e cor.

(Gracilene Pinto, poetisa Maranhense)

A capital do Maranhão foi fundada em 1612, pelos franceses, e é a última a ser listada como Património Mundial pela UNESCO. A urbe é rodeada de praias (Calhau, Ponta d’Areia e São Marcos) onde se situam as ruínas do forte com o mesmo nome, edificado no século XVIII. A era de grande prosperidade de São Luís foi alcançada na segunda metade do mesmo século quando a exportação do algodão atingiu o seu ponto mais alto. Durante este período, a então província do Maranhão fornecia parte considerável dos rendimentos para o Tesouro Real da coroa portuguesa, ultrapassando largamente outras províncias do Império Português.

Foi neste período que são Luís se tornou capital do Maranhão. Com ligação directa à corte Portuguesa. Muitas coisas se passaram entre o seu apogeu e declínio e essa história é visível em áreas como a da Praia Grande, um centro histórico listada no Departamento do Património Nacional. As principais atracções turísticas da cidade situam-se numa área de perto de 107 quilómetros quadrados, plena de edificações datadas dos séculos XVII ao XIX. Mais de 3.000 destes edifícios estão registados como históricos, muitos deles apresentando as respectivas fachadas decoradas (ou cobertas) com azulejaria vidrada, típica do estilo colonial português. Entre eles contam-se o Palácio dos Leões, que até 1615 foi um forte protector da então França Equatorial, como São Luís se designava durante o domínio francês; a Sé Catedral, edificada pelos jesuítas em 1726; a Igreja do Carmo, uma das mais antigas da cidade, construída em 1627; e o Teatro Arthur Azevedo, levantado entre 1815 e 1817, sendo, ao que se julga, o primeiro teatro construído numa capital brasileira.

São Luís foi berço de alguns nomes importantes da literatura brasileira, tais como o do poeta Gonçalves Dias (1823-1864); o escritor Graça Aranha (1868-1931), membro fundador da Academia das Letras Brasileiras e participante do Movimento Modernista em 1922; o novelista Aluísio Azevedo (1857-1913) e seu irmão, o dramaturgo Arthur de Azevedo (1855-1908). Uma extensa produção literária dos escritores locais faz parte do acervo do centro Cultural Josué Montello.

Geograficamente, a cidade está localizada numa ilha formada por terrenos de aluvião, no golfo Maranhense. No seu livro ‘São Luís – Fundamentos do Património Cultural’ – o professor Ananias Martins explica que “o litoral no qual se encontra a Ilha de São Luís foi-se desenhando aos poucos, na decorrência de anos de colisão entre o mar e o continente, nos seus frequentes avanços e recuos, tendo como consequência a erosão e o recorte da costa, formando grutas e ilhas.’

O material da erosão ficou depositado no mar, constituindo bancos de areia ou transformando-se em terreno argiloso acumulado junto às bermas da costa, dando origem a uma vegetação de mangue. Foi neste processo que se formou a Ilha de São Luís, circundada de outras mais pequenas, as baías de São Marcos, São José e Arraial, que no conjunto constituem o dito Golfo Maranhense.

A separação da ilha do continente, citando ainda a sua excelente monografia, Ananias Martins, dá-se por um pequeno trecho de águas ao sul, denominado “Estreito dos Mosquitos”. Também ao sul se encontram as embocaduras dos rios Pindaré, Mearim, Itapecuru e Munin, cujas águas desembocam no mar através do golfo.

O recorte do continente caracterizou-se como um dos factores fundamentais e determinante dos pontos de povoamento europeu na costa do Brasil. Grutas, ilhas, baías e golfos permitiam abrigo para as embarcações procedentes do oceano aberto, onde fundavam novas cidades, por comodidade e segurança.

A Ilha de São Luís (baptizada em honra do soberano francês Luís XIII) foi sempre um excelente habitat para grupos humanos, rodeado que está de águas doces, com diversidade de alimentos, aos quais se somam as incontáveis nascentes internas de águas cristalinas e potáveis que garantiram o seu abastecimento durante séculos. Tudo isto, adicionado às potencialidades piscícolas do Oceano Atlântico, favoreceu, no conjunto, a fixação do povoamento.

8 de Setembro de 1612 é a data oficial da fundação da cidade. Durante a ocupação espanhola de Portugal, em 1615, o português Alexandre de Moura, à frente de 400 soldados, acompanhados de índios, desembarcaram numa baía do golfo e num local chamado de Icatu construíram o Forte de Santa Maria de Guaxenduba. Os franceses, tomando disso conhecimento, fizeram um ataque em conjunto com os seus aliados, os índios Tupinambás, mas foram surpreendidos e derrotados. Os que haviam ficado no Forte de São Luís renderam-se, retirando-se para França, só permanecendo alguns que estavam casados com índias. E assim São Luís reverte para a mão dos Portugueses, ainda súbditos da coroa filipina.

“O então governo ibérico – no dizer de Ananias Martins – queria garantir definitivamente a posse da terra, trazendo do arquipélago dos Açores, os primeiros povoadores.” Assim, em 1619 chegaram os 200 casais de açorianos, que representavam 1.000 pessoas, pois filhos e agregados acompanhavam cada casal. Um número significativo para justificar naquela época um povoamento branco. Ainda no século XVII vieram vários outros casais que se espalharam pela região, tendo muitos deles ido para a cidade de Alcântara. Como curiosidade: só da Ilha Graciosa chegaram mais 200 casais em 1677, trinta e sete anos após a Restauração da independência portuguesa. Das práticas de sobrevivência foi particularmente importante a introdução das técnicas de fiação e produção de panos que movimentaram a economia da cidade dos séculos XVII ao XIX e os primeiros engenhos do açúcar.


São Luís - A Igreja Matriz

Esta nossa primeira tarde em São Luís, valeu por um dia completo: visita superiormente guiada pela Dra. Ester Marques às praias atlânticas, contacto com a gastronomia local na forma de petiscos com caranguejo e caipirinhas (bem gostosas mas malvadonas...), passeio pelo centro histórico, visita a um mercado de artesanato, entrada nas igrejas principais, observação dos edifícios recuperados e a constatação de um fenómeno equatorial, agravado pelo homem, como dias mais tarde nos foi explicado: de quatro em quatro horas, a maré baixa e deixa o enorme curso de água do golfo virtualmente seco e impossível de navegar, encalhando tudo o que é barco, tornando absolutamente inútil a estação fluvial frente ao Palácio dos Leões! Mesmo assim, foi aí que comprámos a passagem para ir, no dia seguinte à cidade de Alcântara, uma preciosidade inenarrável (só as fotos lhe farão alguma justiça), um contraste entre o antigo e a base espacial brasileira, parcialmente encerrada devido a um desastre na tentativa de envio de um foguetão, a uns meros 5 km de distância.


São Luís - Mercado domingueiro

À noite, recebemos no aeroporto a figura incontornável desse governante ilustre da Região Autónoma, o amigo que é o Dr. Carlos Corvelo, Secretário Regional para o Planeamento e para as Negociações dos Assuntos das Regiões Periféricas da União Europeia, cargos que acumula com a de Assessor Principal da vice-presidência da Região Autónoma dos Açores. Num jantar de amigos, em que jornalismo e política foram propositadamente ignorados, estabeleceu-se a tónica para uma vivência fraterna e intensa.


São Luís - Dra. Ester Marques (Chamamaré) na barraca das flores

Alcântara, MA, 8 de Maio de 2006 – Sabíamos de véspera que a maré nos obrigaria a tomar a lancha “Bahia Star” na Ponta da Areia. Chovia miudinho nessa manhã. O Zé e eu transidos na praia a ver a lancha aproximar-se, encalhando e desencalhando uma dúzia de vezes, até, junto do areal, lançar uma escada para podermos subir a bordo, tipo de embarque anfíbio, mais digno de fuzileiros navais que de escribas na pré e meia idades, respectivamente. Minutos antes, a lancha das forças armadas brasileiras embarcava ordeira e militarmente o pelotão que iria para a base espacial. Amavelmente, convidaram-nos a embarcar. Mas os bilhetes estavam comprados, declinámos agradecidos. Uma hora mais tarde, já com os olhos cheios de muito ver e as máquinas fotográficas em pleno labor, chegamos a Alcântara, onde no areal do cais se nos deparou um espectáculo inédito: milhares de buraquinhos na areia e no lodo, habitados por pequenos caranguejos, os célebres “chama marés”, os quais, como o nome popular indica, chamam as águas da maré para poderem viver em pleno. Chamamaré, como veremos mais adiante, empresta o nome ao Instituto de Comunicação e Cultura, parceiro do Governo Regional dos Açores e da Universidade Federal do Maranhão na organização deste memorável e Primeiro Encontro Cultural.


O caranguejo Chamamaré

O desembarque foi como que um imediato recuar no tempo e no espaço. Tudo o que os olhos abrangiam era de um Portugal remoto mas omnipresente: o arruamento, as calçadas irradiantes do porto e do cais, as carrocinhas puxadas por burricos. A partir desse momento foi um deslumbre que a memória nunca mais deixará fugir.

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